BRUNO GHETTI
SÃO PAULO, SP
Os mais jovens talvez não tenham muita noção do quão assustador foi o período em que a Aids se espalhou pelo mundo, significando uma sentença de morte e sofrimento a quem tivesse a enfermidade. Nesse sentido, “Os Primeiros Soldados”, de Rodrigo de Oliveira, é um filme de grande importância, já que preenche a lacuna que nosso cinema possuía sobre o tema.
Os soldados do título são os primeiros homossexuais e trans do Brasil a desenvolver a doença e a enfrentar uma batalha em que a derrota era óbvia -e cujos efeitos negativos eram potencializados por preconceitos, uma mídia predatória e uma profunda ignorância da ciência sobre a síndrome, que só anos mais tarde ameaçaria a sociedade como um todo. O filme é um monumento póstumo a esses guerreiros tristemente vencidos.
Sim, seriam derrotados, mas os personagens do longa não ficam esperando a morte passivamente. Ao contrário, unem forças para resistir a ela da maneira (improvisada) que podem. Mas há luta.
A trama se passa em Vitória, sobretudo em 1983, com foco em três portadores do HIV. Suzano, vivido por Johnny Massaro, é um homossexual de origem burguesa que mora em Paris, mas que volta ao Brasil para visitar a irmã e o sobrinho. Rose, interpretada por Renata Carvalho, é uma travesti que faz shows em uma boate -mesmo lugar onde Humberto, vivido por Victor Camilo, rapaz gay, negro e interiorano, ganha a vida como cinegrafista.
Os três se isolam em um sítio, onde tentam empiricamente fazer pesquisas e conter o avanço da doença, mas onde sobretudo se envolvem em uma rede afetiva de solidariedade e compreensão mútua.
O filme começa meio esparramado, sem muita unidade, com personagens aparecendo e logo sumindo.
Oliveira nem sempre controla as cenas -é especialmente inábil aquela em que Suzano ressurge, levando fotos do próprio corpo tomado por sarcomas de Kaposi para distribuir em uma festa (não sabemos se é um alerta aos demais sobre a doença, um gesto de autopiedade ou um delírio do personagem; de qualquer forma, é um ato sensacionalista demais para alguém que, até então, estava se tratando reclusamente).
Mas a partir da segunda metade, o longa ganha uma extraordinária solidez. As cenas no sítio, em que os três protagonistas se filmam em VHS para ter sua história de certo modo imortalizada -ali, sim, os registros do próprio corpo fazem sentido-, conseguem uma adesão do espectador que parecia inatingível na primeira parte. O filme se torna de fato comovente.
Há, porém, um desnível entre os personagens. Humberto é de longe o menos elaborado, e sua timidez não o torna lá uma figura marcante, sobretudo diante dos espalhafatosos Suzano e Rose -e quando ele inicia um romance com um amigo de infância, o filme reserva ao casal as piores frases do roteiro. Victor Camilo o defende como pode.
Já Massaro tem bem mais com o que trabalhar -é o real protagonista. Mas há algo de desacertado no modo como o ator compõe o personagem em suas primeiras cenas; parece calcular demais tanto maneirismos quanto sofrimento. Mas alguma coisa acontece depois que Suzano se isola com Rose e Humberto no sítio; é como se Massaro, ali, finalmente se encontrasse no papel.
Talvez porque, naquele ponto, Suzano esteja mais amparado, confiante, então o personagem finalmente se torna crível -e, seus trejeitos, mais orgânicos (ou talvez seja o público que, àquela altura, já tenha se acostumado um pouco mais com a afetação da personagem). Resulta, por fim, em uma performance bem convincente.
Mas quem se destaca no filme são duas mulheres. Clara Choveaux, como a irmã de Suzano, tem um encantatório modo de falar sereno mas firme, e como seus traços por vezes a fazem lembrar a grande Glauce Rocha, é uma lástima que é ela apareça tão pouco no longa.
E há, claro, Renata Carvalho, de expressividade assombrosa -nem precisa abrir a boca para que nossos olhos se voltem para ela. Felizmente, porém, Oliveira lhe oferta falas magníficas, e um monólogo em que ela olha para a câmera e narra a história de Rose está entre os pontos altos do cinema brasileiro dos últimos anos.
O final ao som de Secos e Molhados se mostra frustrantemente dispensável: é como se o cineasta terceirizasse a capacidade de comover o espectador -como se seu filme, em si, não o conseguisse sem essa ajuda melódico-poética (o que sequer é verdade). Muito melhor é o uso que faz de Gonzaguinha, em trecho de inserção musical altamente criativo e marcante.
É um filme que cresce na memória do espectador. Se os registros jornalísticos da época sobre o tema tratavam da questão de modo inescapavelmente exploratório, Oliveira substitui esse olhar pelo da ternura e da empatia.
OS PRIMEIROS SOLDADOS
Onde Em cartaz nos cinemas
Elenco Renata Carvalho, Johnny Massaro, Clara Choveaux
Produção Brasil, 2022
Direção Rodrigo de Oliveira
Avaliação Muito bom