“Uma froça incontrolável guiava os meus movimentos e me impulsionava para os desfrutes do abismo, vencendo as minhas últimas resistências morais. Então, ainda sem abrir os olhos, reiniciei o contato físico melífluo com o seu corpo, desta vez fazendo a rota inversa, vindo dos seus pés, subindo pelas coxas, flanqueando-os pelos rins, em direção ao tórax, onde me detive por uns segundos em seu esterno, descendo agora pela barriga. Com lentidão, a mão descia, os olhos covardemente sem se atreverem ainda a apreciar aquela carne negra que tanto me perturbava e me tirava do eixo correto dos acontecimentos.
(…) Como seria possível brotar sentimentos ou mesmo uma volúpia sadia numa relação tão desigual de forças, em que um dos lados detinha o mais absoluto poder sobre o outro, podendo até dispor de sua vida, decidir pela sua permanência ou não, pois estava acobertada por instrumentos sociais e científicos para tal, avalizada por uma série de elementos que a deixariam incólume em tais circunstâncias, enquanto a outra parte nunca esboçara um movimento sequer, nunca abrira os olhos, falara uma palavra, nunca dera margem a nenhum tipo de interação, mínima que fosse, a não ser que possa haver pelo simples fato de existir, de estar fisicamente presente em uma cama, respirando?
(…) Mobilizei em mim todas as energias e pulsões para que pudesse executar esse ato, em toda a plenitude de sua aspereza, o ato possível naquela situação, por me prevalecer da condição de agente de saúde que se apropria do corpo de outrem e o manipula arbitrariamente, seugando-o sem escrúpulos, invadindo com violência a sua intimidade, a desfrutar do cenário de mutismo e imobilidade que me dava todo um raio de ações que não conhecia limites, a não ser os dados pelo outro na medida em que não correspondia fisiologicamente às minhas ações pervertidas…”