No ano em que comemora 40 anos de carreira a cantora baiana Maria Bethânia revira seu baú afetivo e revisita o manancial de composições do Poetinha, Vinícius de Moraes, em seu mais novo disco, Que Falta Você me Faz. A data coincide (garante a intérprete) com a época em que a cantora conheceu o próprio parceiro de Tom Jobim, que deu o empurrãozinho necessário para a jovem Bethânia alçar seus mais altos vôos pelo universo da música popular – êxito alcançado, também, pela invasão baiana dos parceiros tropicalistas Gil, Gal e Caetano, no Rio de Janeiro dos anos 60.
Em entrevista on-line, ontem, Bethânia celebrou o terceiro disco de seu selo Quitanda (distribuído pela Biscoito Fino) e lançou a sua turnê nacional, intitulada Tempo, Tempo, Tempo, Tempo – ela coloca o pé na estrada no dia 24 deste mês. Intérprete de voz vigorosa, Bethânia guarda grandes lembranças do tutor carioca e tenta expressá-las na difícil tarefa de resumir o cancioneiro de Vinícius em 15 faixas de um CD. Em entusiasmada observação, Bethânia relatou: “Foi complicadíssimo, como se pode imaginar. Uma obra tão vasta e tão linda. Eu cheguei a ter 250 canções consideradas imprescindíveis. E aí fui chegando, descobrindo, sob meu ponto de vista, os vários Vinicius que eu conheci. O garoto namorador, o poeta extraordinário com sua dor, o homem preocupado com o seu povo, achando beleza onde não se esperava que alguém visse, o homem generoso, pedindo a bênção, se dizendo de maneira extraordinária o branco mais preto do Brasil”.
A seleção foi minuciosa, e levou em consideração especialmente o aspecto teatral de cada canção, segundo definiu Bethânia. “Eu escolhi um repertório que tivesse alguma coisa de dramaturgia. Exatamente porque sou mais intérprete do que cantora. Fui me guiando pela minha natureza de cantora, eu não me modifiquei para cantar Vinicius, não faria sentido. Pois, afinal, foi esta cantora que sou que ele abraçou no primeiro dia em que me viu cantar”. No álbum, Bethânia é acompanhada pela talentosa prole deixada pelos parceiros de Vinícius, Jobim e Baden Powell.
Para reconstruir as memoráveis Lamento no Morro, Modinha, A Felicidade, Eu Não Existo Sem Você, e outras, Bethânia conta com o apoio de Daniel e Marcel Jobim e Phillippe Baden. O repertório inclui ainda parcerias de Vinícius com Toquinho (Tarde em Itapoã), Carlos Lyra (Minha Namorada) e Adoniran Barbosa (Bom Dia, Tristeza). Que Falta Você Me Faz não é, precisamente, um álbum de Maria Bethânia. Ela, sim, merece o crédito pela grandeza do conteúdo. Contudo, o que fica é a alma do discurso amoroso, doloroso e bucólico de Vinícius, a prosa, o verso e a melodia, reconstituído por uma das maiores autoridades no assunto, a própria tropicalista simples, porém, brilhante, Bethânia.
É ainda uma jornada pela intimidade de Vinícius, a saber pela inusitada inserção de Nature Boy, do americano Eden Ahbez – clássico na voz de Nat King Cole e com bela versão de Caetano Veloso gravada por Nei Matogrosso, nos anos 80 –, ao final do disco. “É porque era a música que Vinicius cantava, sempre antes de dormir. Quando ele ia embora, quando encerrava um trabalho, uma reunião, e a filha dele, Suzana, me disse que ela era ninada por ele com essa canção”, justificou.
A relação musical de Bethânia com Vinícius foi de amor à primeira vista. Tudo começou no instante em que fora apresentada a ele: “Demos uma grande gargalhada juntos… Quando o vi, era como se fosse meu irmão mais velho, meu mestre”, declarou apaixonadamente. “Não sei, mas pelo que vivi com ele enquanto estava neste ciclo, acho que ele gostou de mim, cuidou de mim a vida toda… meu velho amigo”, considerou.
No show que Bethânia leva a cinco capitais (Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Curitiba e Porto Alegre), o repertório não será todo centrado no novo álbum, mas terá dignas homenagens ao Poetinha. “Vou recitar alguns trechos de Vinicius, alguma coisa de prosa. E também, haverá muita coisa inédita de material que foi escrito exclusivamente para mim”, antecipou. Após o lançamento do selo Quitanda, Bethânia engatou três discos em apenas dois anos.
O próximo trabalho, portanto, já ocupa espaço em sua mente inquieta. “Logo que eu puder, lançarei um disco de inéditas”, ressaltou a cantora. Material é o que não falta. Do fim do ano passado para cá, ela coleciona um pequeno acervo de canções inéditas. “Ganhei uma linda música da Zélia (Duncan), mas eu preciso que ela me ensine a cantar a música.
No meu show comemorativo tenho inúmeras inéditas, como uma do Totonho Villeroy, que fez um lindo samba para homenagear a obra de Vinicius. Também tenho uma do Almir Sater, chamada Planícies de Prata”, revelou Maria Bethânia ao Jornal de Brasília.