Amante, santa, prostituta ou discípula? Nos últimos dois mil anos, Maria Madalena comeu o pão que o diabo amassou. Literalmente. Desde os tempos em que tinha sete demônios no corpo (devidamente expulsos), Madalena já foi venerada como santa, pintada como garota de programa, descrita como a discípula predileta de Jesus Cristo e, finalmente, promovida a companheira ou esposa do Messias, com quem teria uma filha, Sara. A última hipótese – que escandalizou o público com a versão do livro de Kazantzakis para o cinema, A Última Tentação de Cristo – é reforçada pelo romance policial O Código da Vinci, do norte-americano Dan Brown, que vendeu 15 milhões de livros e deu origem a uma série de subprodutos.
Só este mês chegaram às livrarias três livros sobre Maria Madalena, personagem também do filme Mary, o mais recente do diretor americano Abel Ferrara (que estréia em 2005), e do episódio da série As Escrituras, exibido ontem pelo Discovery Channel. Tanto os três livros lançados como o filme e a série de TV dividem a mesma crença: Madalena não foi a prostituta regenerada cuja fama a Igreja teria espalhado para atrair pecadores em busca de arrependimento. Ou, ao contrário, para neutralizar a força de uma figura feminina tida como a discípula preferida de Jesus. A estratégia – política – visou a manter intocável o poder dos homens na Igreja primitiva. Afinal, entre os discípulos de Jesus, Madalena teria sido a primeira a testemunhar a Ressurreição e a transmitir seus ensinamentos.
Da VinciEm O Código da Vinci, Madalena, ao casar-se com Jesus, assume – voluntariamente – um compromisso político. Subversivos na Galiléia, eles teriam sido perseguidos e fugido para a França onde deram origem à dinastia merovíngia. Se a tese parece disparatada, espere até ler o romance Maria Madalena, da americana Margaret George, que jura ter pesquisado os evangelhos canônicos (aceitos pela Igreja). Depois da página 209, quando Madalena conhece Jesus (que expulsa os sete demônios), não é essa a impressão que fica. A autora delira. Vencem os evangelhos apócrifos (não reconhecidos).
A arqueóloga Fernanda de Camargo-Moro, tímida, não segue os passos da americana. Em Arqueologia de Madalena, a carioca reconhece que a construção da imagem da discípula como mulher promíscua fez parte de um processo de “desmoralização do sagrado feminino” no protocristianismo, crença dividida pelo teólogo francês Jean-Uves Leloup, autor de O Romance de Maria Madalena.
MoralA bem da verdade, seria difícil – tanto para Dan Brown, de O Código da Vinci, como para os demais autores – montar a história de Maria Madalena sem recorrer aos evangelhos apócrifos. No caso do livro Maria Madalena, de Margaret George, a matriz é mesmo O Livro de Maria, descoberto em 1896, mas ela garante que só foi “entender” direito essa história ao percorrer todo o caminho de Maria e identificar Magdala, que teria sido a cidade de origem da figura bíblica. Roteiro semelhante foi seguido pela arqueóloga carioca Fernanda de Camargo-Moro, que percorreu a Galiléia e a Judéia, visitando mosteiros do Delta em busca de documentos e pesquisando os pergaminhos do Mar Morto.
Os quatro evangelhos canônicos trazem escassas informações sobre Maria Madalena, o que facilita – e muito – a vida dos escritores. Eles podem pisar à vontade no acelerador, avançando o sinal sem ter a carta recolhida. Margaret George, por exemplo, descreve a infância da santa com tal segurança que é possível até sentir a pequena Madalena sendo possuída pelo primeiro dos sete demônios (uma deusa de ébano, de lábios sensuais, que ela descobre na areia e esconde dos pais). Filha de um próspero e religioso comerciante de peixe, Madalena, figura relativamente eclipsada nos evangelhos, assume um papel fundamental na história de Jesus, segundo o livro. Afinal, foi a única entre os discípulos a ficar ao lado da cruz, enquanto os apóstolos se afastaram com medo do invasor romano.
FreudComo seria complicado reinventar Jesus, a escritora transfere essa tarefa especulativa para a figura de Madalena. Ao final, o leitor fica com a impressão de que acabou de ler um daqueles relatos que tornaram Freud célebre entre seus contemporâneos. A décima-terceira “apóstola” é descrita como uma mulher esquizofrênica, ou, no mínimo, vítima de uma crise de identidade, provocada pela rejeição familiar. Não se deve esquecer que, ao ser exorcizada por um homem suspeito para os rabinos, Madalena estaria ferindo preceitos judaicos. Além disso, deveria ser um escândalo para a época uma mulher abandonar a família e seguir um estranho – e ainda por cima, um estranho que curava doentes e ressuscitava mortos.
Bem, é óbvio que a Maria Madalena da escritora americana se apaixona pela figura carismática de Jesus, mas ela é bastante respeitosa para observar, delicadamente, que essa identificação é, antes de tudo, espiritual. Após a prisão e a crucificação, sua heroína parte em direção à Ásia Menor para pregar.
O livro da arqueóloga Fernanda de Camargo-Moro converge para o mesmo ponto quando assume que Maria Madalena foi uma mulher que teve acesso à gnose, preferindo confrontar os limites de uma sociedade misógina – como a judaica, na época – a sufocar seu desejo de conhecimento. À maneira de Jacques Derrida, ela “desconstrói” a figura de Madalena, observando que a discípula não foi a única mulher a seguir Jesus sozinha. Recorrendo ao Evangelho de Lucas para atestar a veracidade desse capítulo, ela conclui que a parte norte da antiga Palestina era mais “avançada” que o sul. Essa conclusão coincide com a teoria que aponta Madalena como a “discípula amada” de Jesus, no lugar de um seguidor anônimo que teria sido o autor do Evangelho de João e é considerado o “discípulo amado”.
E, quando a arqueóloga fala “amada”, quer dizer amada mesmo – tanto no sentido espiritual como carnal, para escândalo dos que repudiaram as liberdades tomadas em A Última Tentação de Cristo, em que o Messias (delirando, na cruz) imagina-se renunciando à missão divina, casando-se com Maria Madalena e virando pai de família. Hoje, como antes, a natureza humana – demasiadamente humana – de ambos continua chocando.