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Dialética no cinema

Arquivo Geral

04/01/2005 0h00

A sugestão é curiosa: como um filósofo antigo dialogaria com um cineasta moderno e neurótico? A resposta é igualmente estimulante: o livro O Que Sócrates Diria a Woody Allen (Planeta, 304 págs., R$ 47), do catedrático espanhol Juan Antonio Rivera. Espécie de O Mundo de Sofia transposto para o cinema, seu livro é uma aula de filosofia para neófitos, ainda que não tão didático como o best-seller de Jostein Gaarder. De qualquer modo, Rivera recorre a filmes clássicos (Casablanca), cult (Blade Runner) e blockbusters (Matrix) para descobrir como as idéias de Platão, Sócrates, Santo Agostinho e Nietzsche foram contrabandeadas para a tela por grandes e pequenos autores do cinema.

Woody Allen, claro, está entre os primeiros e tem dois filmes analisados no livro: Hannah e Suas Irmãs e A Rosa Púrpura do Cairo. Para quem esqueceu a história de Hannah, basta lembrar da seqüência mais hilariante, em que Woody Allen, na pele do hipocondríaco marido de Mia Farrow, passa por uma crise existencial e tenta se apegar à religião, comprando livros, crucifixos e imagens de santos. Tudo para descobrir o sentido da vida. Não encontra consolo em nenhuma das crenças. Reencarnação não lhe parece interessante. Tem medo de voltar na pele de uma foca. O catolicismo tampouco o atrai. Morrer agora e pagar depois é muito para o personagem de Woody, que, além disso, teve educação judaica. Virar “hare krishna” não pega bem para um míope magro como ele, capaz de ser confundido com uma banana pintada dançando pelas ruas. O que fazer? Nada.

Tentar descaradamente obter benefícios mentais com religião, observa Rivera, é uma atitude racional que pode servir ao riso, mas está longe de apontar uma solução filosófica apaziguadora. A solução é o amor, aponta o autor, evocando o epílogo do clássico Cidadão Kane, em que, depois de uma existência poderosa, o público assiste à derrocada do magnata da imprensa Charles Foster Kane. De sua vida restam apenas duas lembranças proustianas: um trenó e um peso de papel, ambos objetos de sua infância. Só nela Kane encontra o conforto do amor verdadeiro (da mãe), porque não aprendeu a principal lição: estima e afeto não se compram, mas se conseguem com doação ao próximo.

Dito assim, o livro de Rivera pode parecer um catecismo dirigido a crianças malvadas. De fato, trata-se de uma obra de iniciação filosófica, embora discuta temas profundos como o livre-arbítrio, tema do assustador filme de ficção de Stanley Kubrick, Laranja Mecânica. Nele, o contraventor Alex é submetido a um tratamento de choque, vira um títere desprovido de vontade, sofre agressões de quem maltratou no passado e, finalmente, recupera sua capacidade de fazer o mal. É o pretexto para Rivera discutir o “gosto moral” formado pelo imaginário cinematográfico. Ao escolher um filme, defende ele, não estamos apenas sendo seletivos, mas buscando afirmar nossa auto-imagem por meio de metapreferências.

Tanto Laranja Mecânica como um filme de gângster do tipo Os Bons Companheiros, de Scorsese, comprovam, segundo ele, que o filósofo John Stuart Mill estava certo ao defender a autonomia individual desde que isso não prejudique o semelhante. Vidas como as de Kane e Alex são vidas desperdiçadas, assegura. Rivera sugere a leitura das Confissões de Santo Agostinho aos que, como os proscritos do cinema, não conseguem se livrar dos maus hábitos. Ou, no mínimo, sofrem da falta de vontade para mudar, como o viciado interpretado pelo cantor Frank Sinatra em O Homem do Braço de Ouro, que confia a Kim Novak a tarefa de trancafiá-lo para ficar livre da heroína. Como um Ulisses amarrado ao mastro para não ouvir o canto das sereias, ele sugere ao leitor que siga a mesma estratégia para se livrar das inúmeras tentações do mundo contemporâneo.

É interessante a relação que Rivera estabelece entre filmes tão diferentes como Viver, de Kurosawa, e Blade Runner, de Ridley Scott, para concluir que os dois tratam do mesmo tema: a busca de um sentido para uma vida menos contemplativa que a do burocrata Watanabe do filme japonês, ou do replicante do inglês Scott. O andróide que salva o ser humano no epílogo de Blade Runner – o mesmo com o qual luta e que, segundos antes, quase matou – sente sua hora se aproximar e muda. Começa a filosofar. Em situações extremas, percebemos que é essa finitude que nos leva ao melhor caminho, sugere o filósofo espanhol.

De modo geral, conclui Rivera, “a consciência e a premeditação ficam de fora e vamos traçando esse caminho, nosso itinerário pessoal, de forma muito rotineira”. Como Watanabe em Viver. Ou o replicante que salva o policial em Blade Runner. Se nem a filosofia de Rivera nem os filmes que abordou convencerem o leitor, ele sugere uma leitura fundamental: Do Amor, de Stendhal. É essa sua principal força de motivação.

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    Arquivo Geral

    04/01/2005 0h00

    A sugestão é curiosa: como um filósofo antigo dialogaria com um cineasta moderno e neurótico? A resposta é igualmente estimulante: o livro O Que Sócrates Diria a Woody Allen (Planeta, 304 págs., R$ 47), do catedrático espanhol Juan Antonio Rivera. Espécie de O Mundo de Sofia transposto para o cinema, seu livro é uma aula de filosofia para neófitos, ainda que não tão didático como o best-seller de Jostein Gaarder. De qualquer modo, Rivera recorre a filmes clássicos (Casablanca), cult (Blade Runner) e blockbusters (Matrix) para descobrir como as idéias de Platão, Sócrates, Santo Agostinho e Nietzsche foram contrabandeadas para a tela por grandes e pequenos autores do cinema.

    Woody Allen, claro, está entre os primeiros e tem dois filmes analisados no livro: Hannah e Suas Irmãs e A Rosa Púrpura do Cairo. Para quem esqueceu a história de Hannah, basta lembrar da seqüência mais hilariante, em que Woody Allen, na pele do hipocondríaco marido de Mia Farrow, passa por uma crise existencial e tenta se apegar à religião, comprando livros, crucifixos e imagens de santos. Tudo para descobrir o sentido da vida. Não encontra consolo em nenhuma das crenças. Reencarnação não lhe parece interessante. Tem medo de voltar na pele de uma foca. O catolicismo tampouco o atrai. Morrer agora e pagar depois é muito para o personagem de Woody, que, além disso, teve educação judaica. Virar “hare krishna” não pega bem para um míope magro como ele, capaz de ser confundido com uma banana pintada dançando pelas ruas. O que fazer? Nada.

    Tentar descaradamente obter benefícios mentais com religião, observa Rivera, é uma atitude racional que pode servir ao riso, mas está longe de apontar uma solução filosófica apaziguadora. A solução é o amor, aponta o autor, evocando o epílogo do clássico Cidadão Kane, em que, depois de uma existência poderosa, o público assiste à derrocada do magnata da imprensa Charles Foster Kane. De sua vida restam apenas duas lembranças proustianas: um trenó e um peso de papel, ambos objetos de sua infância. Só nela Kane encontra o conforto do amor verdadeiro (da mãe), porque não aprendeu a principal lição: estima e afeto não se compram, mas se conseguem com doação ao próximo.

    Dito assim, o livro de Rivera pode parecer um catecismo dirigido a crianças malvadas. De fato, trata-se de uma obra de iniciação filosófica, embora discuta temas profundos como o livre-arbítrio, tema do assustador filme de ficção de Stanley Kubrick, Laranja Mecânica. Nele, o contraventor Alex é submetido a um tratamento de choque, vira um títere desprovido de vontade, sofre agressões de quem maltratou no passado e, finalmente, recupera sua capacidade de fazer o mal. É o pretexto para Rivera discutir o “gosto moral” formado pelo imaginário cinematográfico. Ao escolher um filme, defende ele, não estamos apenas sendo seletivos, mas buscando afirmar nossa auto-imagem por meio de metapreferências.

    Tanto Laranja Mecânica como um filme de gângster do tipo Os Bons Companheiros, de Scorsese, comprovam, segundo ele, que o filósofo John Stuart Mill estava certo ao defender a autonomia individual desde que isso não prejudique o semelhante. Vidas como as de Kane e Alex são vidas desperdiçadas, assegura. Rivera sugere a leitura das Confissões de Santo Agostinho aos que, como os proscritos do cinema, não conseguem se livrar dos maus hábitos. Ou, no mínimo, sofrem da falta de vontade para mudar, como o viciado interpretado pelo cantor Frank Sinatra em O Homem do Braço de Ouro, que confia a Kim Novak a tarefa de trancafiá-lo para ficar livre da heroína. Como um Ulisses amarrado ao mastro para não ouvir o canto das sereias, ele sugere ao leitor que siga a mesma estratégia para se livrar das inúmeras tentações do mundo contemporâneo.

    É interessante a relação que Rivera estabelece entre filmes tão diferentes como Viver, de Kurosawa, e Blade Runner, de Ridley Scott, para concluir que os dois tratam do mesmo tema: a busca de um sentido para uma vida menos contemplativa que a do burocrata Watanabe do filme japonês, ou do replicante do inglês Scott. O andróide que salva o ser humano no epílogo de Blade Runner – o mesmo com o qual luta e que, segundos antes, quase matou – sente sua hora se aproximar e muda. Começa a filosofar. Em situações extremas, percebemos que é essa finitude que nos leva ao melhor caminho, sugere o filósofo espanhol.

    De modo geral, conclui Rivera, “a consciência e a premeditação ficam de fora e vamos traçando esse caminho, nosso itinerário pessoal, de forma muito rotineira”. Como Watanabe em Viver. Ou o replicante que salva o policial em Blade Runner. Se nem a filosofia de Rivera nem os filmes que abordou convencerem o leitor, ele sugere uma leitura fundamental: Do Amor, de Stendhal. É essa sua principal força de motivação.

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