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Saúde

Essure: mulheres buscam reparação após danos; empresa nega riscos

Desde 2017 o método está proibido no Brasil. No centro da polêmica, as vítimas ainda sofrem as consequências do que se tornou um pesadelo

Agência UniCeub

13/10/2020 16h03

Geovanna Bispo
Jornal de Brasília/Agência UniCeub

Gizeli estava trabalhando em seu salão, quando o assunto “métodos contraceptivos” começou a ser debatido pelo grupo de clientes. Ela, que sempre teve medo do famoso DIU (dispositivo intrauterino), havia implantado em 2013 o dispositivo Essure, fabricado pela empresa alemã Bayer, em uma campanha realizada pelo SUS, mas após isso nunca havia procurado saber muito sobre o tema.

Por curiosidade, em seu intervalo, Gizeli resolveu buscar na internet e levou um susto ao descobrir que o dispositivo havia sido proibido pela Anvisa em 2017, trazendo risco “máximo” para as mulheres. No DF, a Secretaria de Saúde argumenta que disponibiliza assistência para retirada.

Do outro lado, a empresa nega que o Essure seja perigoso. Desde então, o método está proibido no Brasil. No centro da polêmica, as vítimas ainda sofrem as consequências do que se tornou um pesadelo.

Gizeli Silva é mãe de dois filhos, um de 18 e um de 21, e pretendia fazer uma laqueadura quando foi convidada para uma palestra em um posto de saúde para falar sobre o novo método, que, na época, foi tratado como “revolucionário”, realizado sem cortes e indolor. “Nessa palestra, eles falaram que o Essure era um método indolor, que não tinha corte e que você poderia tocar sua vida normal. Que mulher que não quer isso?”

Mas o que a cabeleireira de 41 anos não esperava eram os problemas que se seguiriam. Cólicas profundas, infecções, menstruações longas e com fluxos intensos, fortes dores nos quadris, formigamentos nos membros, dores de cabeça e nas articulações, inchaços abdominais e queda de cabelo foram algumas das queixas que duzentas mulheres, das cerca de 2 mil que participaram da campanha, sofreram ou sofrem até hoje.

Com dores e sem emprego

Da mesma maneira que Gizeli, a dona de casa Lucineia Nunes, de 43 anos, implantou o Essure em 2012, no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), e relembra que, quando foi fazer o procedimento sentiu muitas dores. “Quando foi na minha vez de colocar, eu senti muita dor. Algumas colegas minhas desistiram de tanta dor que sentiram. Fui para casa com muita cólica, comecei a menstruar e fiquei quase um mês. Não foi igual ao que disseram.”

As cólicas e a longa menstruação somaram-se a dores de cabeça intensas, mas Lucineia tinha que continuar a vida e voltou a trabalhar. Até que, cinco anos depois de colocar o dispositivo, ficou grávida de seu quinto filho. “Passei toda minha gestação com infecção urinária, dores nas pernas e abaixo da barriga, sempre achava que estava para perder meu filho. Eu passei a gestação toda sem aumento de peso, só aumentei três quilos.”

Quando a licença maternidade acabou, Lucineia continuou com dores e não conseguia trabalhar. Perdeu o emprego em uma empresa de telemarketing e precisou virar autônoma, até que as dores atrapalharam sua vida novamente.

“Depois da licença maternidade, perdi meu emprego, fiquei em casa, tentando me manter da forma que eu podia. Fui ser autônoma para tentar manter meus filhos. Quando um dia eu não consegui mais sair nem para vender minhas mercadorias, devido ao peso que eu carregava,  tive uma infecção urinária muito forte e daí em diante eu não tive mais saúde”.  As dores permaneceram e foi receitado a ela voltar a tomar o anticoncepcional. “Sentia fisgadas no corpo inteiro, pernas, braços, pés, barriga. Eu fiz a transvaginal e soube que meu útero cresceu.”

Descaso

Dentre todas as coisas em comum entre as vítimas, o descaso do serviço de saúde com elas é uma reclamação unânime. Kelli Patrícia, de 40 anos e mãe de quatro filhos, colocou o dispositivo em 2012 e durante seis anos buscou constantemente hospitais públicos relatando cólicas, dores de cabeça e articulações, mas sempre recebeu a mesma resposta: o Essure não tem nada a ver.

Da mesma forma que Kelli, Poliana Almeida, de 30 anos e mãe de dois filhos, procurou os hospitais diversas vezes se queixando de dores e inchaço abdominal, queda de cabelo e sangramento intenso, mas ainda assim disse que sempre foi “destratada”, chegando a ouvir que “ela estava inventando dores”.  Ela chegou a ser encaminhada para o setor de psicologia, já que foi insistido com ela que o dispositivo era seguro. “E as dores só aumentando.”

Gizeli também conta que sofreu para conseguir conversar com um médico. Ela precisou insistir e falar que tinha o Essure para ter a primeira consulta com especialista em endoscopia ginecológica. Para conseguir um retorno, ela precisou entrar como acompanhante de outra mulher no atendimento. “Só aí o médico começou a me acompanhar, mas ainda assim ele falava que não tinha nada a ver com o essure, que eu devia estar com problema na tireoide, problema hormonal. Ele pediu um monte de exames, mas nenhum deu nada.”

O dispositivo e sua retirada

Segundo o ginecologista Carlos Alberto Politano, integrante da Comissão Nacional Especializada em Anticoncepção da Federação Brasileira das Associações de ginecologia e obstetrícia (Febrasgo) , o Essure é um dispositivo feito de molas pequenas. “O Essure é um par de molas de quatro centímetros, que se fixam nas parede da trompa, com estrutura de aço inoxidável, o que estimula o crescimento do tecido das trompas que faz a obstrução dela. Aí começam algumas situações, porque é um procedimento que é feito com histeroscopia (procedimento intervaginal, que o médico coloca um aparelho pelo colo do útero, visualiza o orifício tubário), entra nesse orifício e libera essa molinha”.

Por sua vez, a Secretária de Saúde do Distrito Federal ainda o descreve como um método de esterilização feminina voluntária, definitiva e irreversível, ou seja, para retirá-lo é necessário que se retire as trompas e, em casos mais graves, todo o útero.

Em julho, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal publicou uma nota técnica em que oferece orientações sobre atendimento e retirada do dispositivo, instruindo que as pacientes que tiverem o Essure devem procurar a Unidade Básica de Saúde (UBS) para terem os sintomas avaliados. A secretaria acrescenta que a pessoa, se orientada pelo posto de saúde, deve se dirigir para as Unidades de Atenção Secundária à Saúde (ambulatórios especializados – Reprodução humana, ginecologia endócrina, climatério).

Mas esse documento da secretaria veio após registros de reclamações e realização de protestos por partes dessas mulheres. Conforme explica Lucineia, ela precisou entrar na Justiça para conseguir a cirurgia e insistir para o médico fazer a retirada completa do útero.

“Hoje eu sou vitoriosa, eu consegui fazer a cirurgia porque eu entrei na justiça”. Ela conseguiu liminar para fazer as consultas e a cirurgia.  Depois veio um baque muito forte. “Antes do dia da minha cirurgia, eu soube que eu estava com adenomiose (glândulas endometriais no miométrio) e o médico resolveu tirar o meu útero, de tanto eu pedir e insistir.”

“Eu me senti enganada, me senti uma cobaia humana”

Lucineia Nunes, 43 anos.

O mesmo não aconteceu com Gizeli que também conseguiu fazer a cirurgia por meio de uma liminar, mas argumenta que teve o dispositivo retirado de forma errada e precisou fazer outra cirurgia em setembro. A cabeleireira conta que ao se tentar tirar o dispositivo, ele teria se fragmentado e resquícios das molas ainda ficaram dentro de seu útero. “Depois da cirurgia eu comecei a passar mal e sentir febre, fui no hospital e fiz um raio-x e deu para ver o pedaço. Aí eu tive que fazer a histerectomia, porque não tinha outro jeito de retirar o fragmento. Inclusive, eu estou no pós-operatório agora, eu fiz a cirurgia dia 8 de setembro. Depois disso eu já tive sangramento na cirurgia, fiquei internada três dias.”

Com o mesmo problema, Kelli Patrícia, que precisou fazer a cirurgia na rede particular, teve o dispositivo puxado, o que o fez fragmentar e se espalhar pelo seu útero. “No final de 2018, eu fiz na (rede) particular a retirada do Essure, mas como muitos médicos até hoje não sabem o que é o Essure, nem mesmo os próprios médicos que colocaram ele estão sabendo retirar”, reclama.

Da mesma forma que Kelli, Poliana também não conseguiu fazer a cirurgia pelo sistema público e, após descobrir uma endometriose profunda, abriu um vaquinha on-line e contou sua história, conseguindo realizar o procedimento há pouco mais de dois meses.

“Aqui no DF, se fosse fazer no particular, sairia muito caro, então onde eu consegui fazer a minha retirada foi em Planaltina de Goiás (GO), fiz uma vaquinha online e contei para as pessoas sobre o risco que eu estava correndo de perder uma parte dos meus órgãos. Então, as pessoas começaram a doar e me ligar querendo saber como era esse dispositivo.”

Pós-cirurgia

A luta de Lucineia ainda não acabou. Em seu segundo retorno ao médico, ao fazer a biópsia, ela teve outra surpresa que a angustiou. “Na segunda consulta de retorno após a cirurgia, eu pedi a biópsia e descobri que estava com câncer de colo do útero. Eu fiz a prevenção antes da cirurgia, mas para a minha surpresa eu estava doente e eu não sabia. Devido à adenomiose que foi muito forte, muito severa, minhas trompas estavam muito inflamadas e eu acredito que foi por causa do Essure porque ele é um corpo estranho no nosso. Hoje eu estou tendo acompanhamento médico de seis em seis meses. Estou com fibromialgia. E agora vida que segue.”

Redes sociais

Em agosto de 2019, Kelli e duas outras vítimas decidiram criar uma conta no instagram e facebook para compartilhar sua causa e tentar ajudar mulheres, que, assim como elas, haviam sido violadas pelo Estado. “Hoje nós temos um grupo no facebook que tem mil mulheres participantes do grupo e que, de alguma forma, já tiraram ou não sentem nada. No nosso grupo hoje, que estão tentando tirar, são 200 mulheres. Muitas que colocaram na época, assim como eu, não imaginavam que os efeitos colaterais eram por conta do Essure, então tem muitas mulheres ainda que passam mal e que não sabem que tudo que elas sentem é por conta do Essure.”

Luta contra o Essure

Para Poliana, o sentimento que fica é de que ela foi usada e deseja que, assim como ela, as outras mulheres que foram vítimas também consigam derrotar esse dispositivo.

“Hoje, o que eu sinto desse dispositivo, é que eu fui usada como uma cobaia, como uma experiência médica. Porque só me trouxe mal para a minha saúde, se eu não tivesse feito a cirurgia, eu poderia nem estar mais aqui, por que a cada dia as dores aumentavam e o risco estava maior. Então, eu me senti como uma cobaia para eles testarem um dispositivo que só serviu para eu me sentir mal. Me fez perder empregos, me fez perder minha vida, me fez não conseguir ficar em pé, me fez não conseguir vestir uma roupa porque a barriga ficava muito inchada, a autoestima fica muito ruim, você não consegue se ver como você era antes. Hoje, eu desejo que todas essas mulheres que colocaram esse dispositivo consiga vencer essa luta, consiga se ver livre desse dispositivo e que a luta não para.”

Assistência e encaminhamento

Em nota à reportagem, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal afirma que, antes da colocação dos dispositivos, todas as mulheres passaram por avaliação médica, receberam informações sobre os benefícios e possíveis efeitos colaterais do método, tendo, ao final, assinado termos de consentimento.

O órgão ainda afirma que todas as mulheres que procuraram os hospitais se queixando de dores foram encaminhadas para a equipe ginecológica, que realiza o atendimento no ambulatório e faz a correta avaliação clínica da paciente.

Por fim, a Secretaria diz que, quando verificada a necessidade de retirada do Essure, a paciente é assistida e encaminhada para realizar a cirurgia, sendo acolhida pelo Hmib e atendida da melhor maneira possível para que o problema seja solucionado.

Bayer

Segundo a empresa alemã Bayer,  por intermédio de nota encaminhada pela assessoria de comunicação, a segurança do Essure é comprovada por estudos científicos desenvolvidos nos últimos 20 anos, envolvendo mais de 270 mil mulheres e produzidos pela própria empresa e pesquisadores independentes.
Oficialmente, eles afirmam que todos os produtos e procedimentos para controle de natalidade têm riscos e que o Essure apresenta números comparáveis a outras opções. A empresa ainda reforça que a Anvisa jamais proibiu a comercialização do dispositivo por questões de segurança ou eficácia. “A decisão de suspender temporariamente sua comercialização se deu por uma questão administrativa causada pelo atraso na apresentação de documentos por parte da COMMED (Comercial Commed Produtos Hospitalares Ltda), detentora do registro do produto no Brasil e responsável pela distribuição exclusiva na época. Após essa questão ter sido resolvida, a comercialização de Essure no Brasil foi liberada pela ANVISA. Em 2017, a Bayer decidiu encerrar a comercialização do produto globalmente, com exceção dos EUA, por questões comerciais e estratégicas de negócios, não tendo qualquer relação com a segurança e eficácia do contraceptivo.”
Por fim, a Bayer afirma que as mulheres que possuem o Essure podem continuar confiando no dispositivo para sua saúde reprodutiva, aconselhando a conversa com médicos caso haja dúvidas ou preocupações. “A Bayer vê com preocupação o incentivo contínuo para a remoção de Essure, incluindo informações imprecisas ou enganosas disseminadas por terceiros, que podem levar as mulheres a buscarem uma cirurgia de remoção invasiva e injustificada, o que pode causar novos problemas de saúde.”

Protocolo para o Essure

Por outro lado, o MPDFT diz exigir que a Secretária de Saúde do Distrito Federal estabeleça um protocolo e localize todas as mulheres que fizeram os implantes, realize consultas, exames e possíveis retiradas do dispositivo.

O órgão ainda entende que a empresa farmacêutica Bayer, produtora do Essure, também deve ser responsabilizada pelas complicações clínicas decorrentes do uso do dispositivo, sugerindo que a empresa seja acionada judicialmente a custear os tratamentos necessários para recuperar a saúde das pacientes prejudicadas.

Segundo o MPDFT, em reunião realizada entre integrantes da 3ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde (Prosus) e a Secretaria, eles afirmaram que, por um “exagero por parte da mídia”, estão desqualificando o método, fazendo com que as mulheres se sintam motivadas a retirar o dispositivo, não apenas para recuperar a saúde física.

Riscos do Essure

Em fevereiro de 2017, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) determinou a suspensão da importação, distribuição, comercialização, uso e divulgação do dispositivo Essure em todo território nacional.

Em nota, o órgão diz que se baseou em relatórios técnicos-científicos e o classificou como risco máximo, podendo provocar alterações no sangramento menstrual, gravidez indesejada, dor crônica, perfuração e migração do dispositivo, alergia e sensibilidade ou reações do tipo imune.

“Em 2017 o produto foi suspenso no Brasil. A ação aconteceu após  a ausência de manifestação da empresa detentora (Comercial Commed Produtos Hospitalares Ltda) do registro diante dos questionamento que a Anvisa apresentou para atualização dos estudos clínicos.”

Após isso, em dezembro de 2018, a empresa teria apresentado os documentos e testes solicitados, voltando a ser liberado. Porém, em 28 de janeiro de 2019 o dispositivo teve seu registro cancelado, dessa forma, voltando a ser proibida a comercialização, importação e implantação do método no Brasil.

“O registro foi cancelado a pedido da empresa, mas a empresa continua sendo responsável pelo monitoramento e acompanhamento do produto no mercado, já que a responsabilidade pela qualidade do produto é do detentor do registro, ou seja, a empresa que registrou o produto no Brasil.”

Ainda em nota, a Anvisa diz que as mulheres que tiverem o dispositivo implantado devem manter o acompanhamento regular com seu médico e que não recomenda a retirada do dispositivo, a menos que haja orientação médica para isso.

A agência ainda oferece um formulário e um telefone (0800 642 9784) para mulheres que tenham o dispositivo e desejem registrar suas ocorrências com ele.

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