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Política & Poder

Reforma eleitoral ‘secreta’ planejada no Congresso pode afetar democracia, diz diretor do Transparência Partidária

O diretor-executivo do Movimento Transparência Partidária, Marcelo Issa, afirma que o Congresso tenta emplacar um pacote de retrocessos na legislação política

Redação Jornal de Brasília

20/07/2021 7h37

Brasília 60 Anos – Congresso Nacional

Ranier Bragon
FolhaPress

O diretor-executivo do Movimento Transparência Partidária, Marcelo Issa, afirma que o Congresso tenta emplacar um pacote de retrocessos na legislação política, com relatórios produzidos às escondidas e que se valem do fato de os holofotes estarem sobre a pandemia da Covid-19.

Em entrevista à Folha, o advogado e cientista político diz que, caso Câmara dos Deputados e Senado consigam aprovar as mudanças que estão sendo discutidas atualmente, em um volume nunca visto deste a Constituição de 1988, há riscos de abalo à democracia brasileira.

“Entendo que existe um risco de comprometimento efetivo da qualidade da nossa democracia em um médio prazo”, afirma Issa, que critica as principais medidas já tornadas públicas, como o distritão e o afrouxamento de regras de transparência, fiscalização e punição de irregularidades.

Ele defende mais tempo e a efetiva participação da sociedade nesse debate.

Em todo esse tempo que vocês acompanham a questão eleitoral e partidária, já tinham visto uma tentativa, em volume e em lobby, como a deste ano da Câmara e do Senado para tentar mudar a legislação eleitoral e política no Brasil?


Não, essa tentativa de 2021 é inédita, tanto do ponto de vista da forma como do conteúdo. Nós levantamos todas as Legislaturas anteriores, desde a redemocratização, e nunca ocorreram três arenas distintas funcionando simultaneamente na Câmara dos Deputados como agora, fora projetos isolados de impacto no Senado.

O grande risco que corremos, concreto, é de chegarmos em outubro com o sistema político inteiramente reformulado [uma das comissões, por exemplo, pretende revogar toda a legislação eleitoral e instituir um único código]. Não existe nenhum aspecto relacionado às regras eleitorais e de funcionamento dos partidos que não esteja em debate.

Na avaliação de vocês, essas alterações são mais positivas ou mais negativas?

Primeiro, um comentário sobre a forma, sobre o atropelo com que esse processo foi marcado, a falta de transparência e de participação. O Brasil vivencia a crise humanitária mais grave de sua história, com o Congresso funcionando em um sistema híbrido, e muito mais remoto que presencial, e com as audiências públicas ocorrendo em um ambiente virtual. Ressalte-se que não há nem sequer proposta apresentada oficialmente —esse código eleitoral, por exemplo, ele pode ser votado nas próximas semanas, mas ainda não existe oficialmente.

No mérito, com relação ao sistema eleitoral, as propostas que surgiram até agora são esdrúxulas. O distritão é um sistema que vai implodir os partidos políticos, que vai favorecer a eleição calcada apenas nas características pessoais dos candidatos, sem qualquer vínculo ou embasamento programático [o modelo proposto substitui o atual para a eleição de deputados e vereadores, privilegiando o voto nos candidatos em detrimento dos votos totais dos partidos].

Do ponto de vista da transparência, do controle social, da prestação de contas, as propostas até o momento implicam uma série de retrocessos na medida que enfraquecem drasticamente as instituições de controle, e de um modo mais intenso, a Justiça Eleitoral, que tem sido fortalecida nos últimos anos [as propostas visam impedir que interpretações da lei definidas pelo Judiciário só valham nas eleições se ocorrem com antecedência de pelo menos um ano].

Em relação à inclusão de grupos sub-representados na política institucional, nem sequer os avanços já obtidos são preservados, mesmo aqueles reconhecidos no nível constitucional, por pronunciamentos da suprema corte, como as cotas de gênero e racial, por exemplo, que não apareceram ainda nessas amostras que têm circulado.

Então é uma reforma secreta, costurada nos bastidores, cujas amostras circuladas informalmente trazem uma série de retrocessos, seja do ponto de vista de transparência e integridade, seja do ponto de vista de inclusão, representatividade, participação e controle social.

Quais pontos vocês elencariam como os mais graves?

Em primeiro lugar, os retrocessos que aparecem na fiscalização dos recursos públicos transferidos para as agremiações e para as campanhas são, sem sombra de dúvida, o ponto de maior preocupação [as propostas afrouxam as regras de prestação de contas].

Até em vista do aumento substantivo dos recursos públicos para as campanhas eleitorais [o Congresso aprovou a triplicação do fundo eleitoral, para R$ 5,7 bilhões]. Já deveria ter havido um choque de transparência desde 2015, quando as doações empresariais foram proibidas, e isso não se verificou.

O segundo ponto de preocupação diz respeito à limitação das prerrogativas da Justiça Eleitoral. Destacaria também o enfraquecimento dos mecanismos de persecução dos crimes eleitorais, especialmente as exigências para cassação de mandato. São incluídas nas versões informais, por exemplo, algumas exigências hoje inexistente, como a presença de alguma forma de violência para cassar mandatos, o que pode, na prática, inviabilizar a concretização dessa pena.

Há ainda a possibilidade de que toda a legislação referente ao nosso sistema político alcance um patamar de rigidez legislativa que pode torná-la disfuncional. Na medida em que tem todas as regras são codificadas em um projeto de lei complementar, inclusive regras referentes à propaganda, comunicação, utilização de novas tecnologias, aspectos que mudam muito rapidamente, essa rigidez pode fazer que o própio sistema se mostre disfuncional.

O que pode ser feito pelas entidades de defesa da transparência e pela sociedade como um todo para que não ocorram retrocessos?


Primeiro, tem que ficar muito claro que, embora esse seja um momento de emergência pela pandemia, e que com razão as pessoas estejam preocupadas com o enfrentamento da doença e com questões mais urgentes, esse debate [reforma política e eleitoral] é extremamente importante e dele pode depender a própria sobrevivência da democracia brasileira. Entendo que existe um risco de comprometimento efetivo da qualidade da nossa democracia em um médio prazo.

Então, nós estamos articulando uma campanha, com uma série de entidades, organizações, coletivos, especialistas, e queremos trazer mais envolvimento para esse debate, mais vozes, inclusive dos parlamentares, que têm se manifestado pouco sobre o assunto.

As audiências públicas que ocorreram não permitem o debate, não há réplicas, não há audiências públicas sendo realizadas após a apresentação das propostas. É preciso que esse debate ocorra com mais cuidado e em uma condição de envolvimento maior da sociedade, o que não ocorre agora.

Então ainda que seja necessário adiar um pouco o debate, que isso seja feito para que a gente tenha ao final regras claras, segurança jurídica e avanço no sentido daquilo que é a vontade efetiva da população. Mais transparência, mais inclusão, mais representatividade, e não o contrário disso.

Como se dá a campanha que vocês estão promovendo sobre a reforma política e eleitoral?


A campanha chama-se “Freio na Reforma, política se reforma com democracia”. A ideia é trazer mais participação, mais pluralidade, mais transparência e mais cuidado para esse debate. A campanha é idealizada e coordenada pelo Transparência Partidária, pelo ITS [Instituto de Tecnologia e Sociedade] Rio e pelo Pacto pela Democracia, mas com o apoio de mais de três dezenas de entidades, como Associação Brasileira de Ciência Política, Transparência Brasil e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo.

A ideia é monitorar o processo, temos produzido uma série de estudos sobre as propostas que têm circulado, para qualificar o debate, de um lado, mas também envolver mais interlocutores e chamar à responsabilidade os atores envolvidos nesse processo para que a reforma política ocorra com a responsabilidade que ela precisa ocorrer.

?Se essas proposta passarem e entrarem em vigor, algus casos podem ser judicializados?


Está claro que não existe coordenação nesse processo. Por algum motivo, propostas surgidas nos diferentes âmbitos são contraditórias entre elas. O risco de que essa pressa produza resultados conflitantes e eventualmente até inconstitucionais aumenta significativamente a possibilidade de que o Judiciário seja chamado mais adiante para se pronunciar sobre essas questões.

Mesmo com um histórico de escândalos, sendo o último deles a Lava Jato, o que contribuiu para se chegar a um cenário propício à aprovação de uma reforma dessa magnitude e, na visão de vocês, tão repleta de retrocessos?
Primeiro é preciso reconhecer que sempre houve esse ímpeto. Não é algo que tenha surgido este ano ou que seja decorrência imediata do enfraquecimento da Operação Lava Jato ou do enfraquecimento dos mecanismos de combate à transparência e combate à corrupção e controle social que temos verificados nos últimos.

Desde que a legislação eleitoral e partidária está em vigor, nos anos 90, todas as modificações que ocorreram foram orientadas a flexibilizar sanções aplicáveis a candidatos ou partidos, diminuir ou enfraquecer o controle da Justiça Eleitoral sobre as campanhas, então não é um movimento novo.

Mas esse ímpeto que existe há muitos anos se aproveitou do enfraquecimento desses mecanismos e também da pandemia, das atenções voltadas a essa temática, da dificuldade de participação da população, do congestionamento do noticiário, para criar um movimento que pode ter resultados imprevisíveis.

Na avaliação de você, qual seria a reforma ideal a ser feita?


Os partidos são o coração do sistema político brasileiro e são, paradoxalmente, os grandes esquecidos durante as discussões de reforma política. A gente costuma debater a cada dois anos as regras eleitorais, o sistema de financiamento de campanha, e nos esquecemos de debater as regras de governança, de transparência dos partidos políticos.

Com todo o respeito à autonomia partidária, é necessário fazer com que os partidos políticos obedeçam o que a Constituição já determina desde 1988. Constituição de partidos transparentes, democráticos, que prezem pela integridade, pela racionalidade e eficiência no uso dos recursos públicos que recebem. O debate da reforma deveria começar pelo debate sobre os partidos políticos.

RAIO-X
Marcelo Issa
38 anos
Cientista político e advogado
Co-fundador e diretor-executivo do Movimento Transparência Partidária
Membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil, onde foi editor do portal Excelências
Professor no curso Advocacy e Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV)

ENTENDA AS PRINCIPAIS MUDANÇAS EM DISCUSSÃO NA CÂMARA E NO SENADO


CÂMARA DOS DEPUTADOS
Mudanças na Constituição
O QUE É: Pretende, entre outros pontos, alterar o modelo eleitoral de deputados e vereadores do “proporcional” (que privilegia o apoio aos partidos) para o “distritão” (que privilegia candidatos em detrimento dos partidos), além de colocar amarras no poder do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal de interpretar a legislação eleitoral —resoluções aprovadas com menos de um ano de prazo não valeriam nas eleições.

ESTÁGIO: relatório da deputada Renata Abreu (Podemos-SP) deve ser votado em comissão especial em agosto. Após isso, vai a plenário. Para valer nas eleições de 2022, tem que estar promulgado até o início de outubro deste ano

Mudanças na legislação comum

O QUE É: revoga toda a legislação eleitoral comum (leis e leis complementares) e estabelece um único código. Entre os vários pontos, fragiliza e simplifica os processos de transparência e fiscalização de partidos e candidatos, restringe pesquisas eleitorais e afrouxa as regras de inelegibilidade previstas na lei da Ficha Limpa

ESTÁGIO: relatório da deputada Margarete Coelho (PP-PI), elaborado em um Grupo de Trabalho, deve ser votado em agosto, direto no plenário. Depois, segue para o Senado, e precisa ser sancionado até o início de outubro deste ano para valer para 2022

Voto impresso

O QUE É: pretende instituir a impressão do voto dado nas urnas eletrônicas

ESTÁGIO: está pronto para ser votado em comissão especial da Câmara. Se aprovado, segue para o plenário. Para valer nas eleições de 2022, tem que estar promulgado até o início de outubro deste ano

SENADO


Minirreforma eleitoral


O QUE É: estabelece, entre outros pontos, anistia aos partidos que não cumpriram as cotas de gênero e racial nas eleições realizadas ate agora. Estabelece cota de cadeiras femininas nos Legislativos (18% em 2022, chegando a 30% em 2038), mas retira a exigência de que os partidos lancem ao menos 30% de candidatas, além de desobrigá-los de destinar recursos de campanha e tempo de propaganda proporcionais ao número de candidatas (desde que não seja inferior a 30%).

ESTÁGIO: projetos foram aprovados pelo Senado e seguem para análise da Câmara.

CONGRESSO


Fundo eleitoral


O QUE É: Deputados e senadores aprovaram a LDO com dispositivo que quase triplica o valor do fundo eleitoral para as eleições de 2022, indo para R$ 5,7 bilhões. O fundo é a principal fonte de financiamento dos candidatos.

ESTÁGIO: O valor de R$ 5,7 bilhões foi aprovado pela comissão do Orçamento na proposta da Lei de Diretrizes Orçamentárias. A proposta ainda tem que ser avalizada pelo plenário do Congresso e ratificada na discussão do Orçamento-2022, a partir de setembro.? O presidente Jair Bolsonaro pode vetar, mas o Congresso tem a palavra final e pode derrubar eventual veto.

AINDA NÃO FORMALIZADO


Semipresidencialismo


O QUE É: Espécie de parlamentarismo, mas com a manutenção de mais poder na mão do presidente. O Presidente da República, eleito pelo voto direto, é o chefe de Estado, comandante Supremo das Forças Armadas e tem o poder de dissolver o Congresso Nacional em casos extremos, convocando novas eleições, entre outras funções. Ele é responsável por indicar o primeiro-ministro, que é quem governará, de fato, juntamente com o Conselho de Ministros. O gabinete cai e é substituído caso perca apoio no Congresso.

ESTÁGIO: Modelo é defendido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e pelo ex-presidente Michel Temer (MDB). O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), manifestou inclinação favorável à medida, para valer a partir de 2026. Oposição no Congresso é contra.

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