Priscila Camazano
São Paulo, SP
A nova ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, quer dialogar durante a sua gestão com quem discorda da Lei de Cotas e minimiza a violência sofrida pela população negra no Brasil.
“É muito fácil dialogar com pessoas que pensam como a gente. Mas eu tenho que tentar furar essa bolha e conversar com as pessoas que pensam diferente de mim”, afirma a ministra.
Anielle Franco é irmã da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em 2018, no centro do Rio de Janeiro, em um crime que permanece sem solução. Após o episódio, ela ajudou a fundar o Instituto Marielle Franco.
Ela deixa o cargo de diretora-executiva da entidade para assumir a pasta no governo Lula.
Na última quarta-feira (11), a ministra tomou posse em uma cerimônia no Palácio do Planalto, prédio que ainda apresenta sinais da destruição promovida pelos ataques golpistas do domingo.
Em entrevista, ela fala sobre as pautas que pretende trabalhar na gestão, o projeto de lei que tipifica a injúria racial como crime de racismo, seu livro recém-lançado “Minha Irmã e Eu” e a possibilidade de federalizar o caso de Marielle.
Questionada sobre o elo político da titular do Turismo, Daniela Carneiro (União Brasil), com acusados de chefiar milícias no Rio de Janeiro, a ministra afirmou que “a nomeação de ministros é uma atribuição do presidente Lula, que já deixou explícito que qualquer um dos ministros que aja de maneira duvidosa e contra a lei, será retirado do governo por ele mesmo”.
PERGUNTA – Como a sra. vê o ataque golpista em Brasília?
ANIELLE FRANCO – Eu vi como um ato de vandalismo muito grave. Um ataque à nossa democracia e à Constituição. Algo que tem me preocupado muito é as pessoas não aceitarem o resultado das urnas e continuarem dizendo que é golpe. Mas eu entendo e também respeito, porque é uma parcela da população com quem vamos precisar dialogar.
Uma cena que vai me marcar para o resto da vida foi ver mulheres, na sua grande maioria negras e indígenas, limpando toda aquela atrocidade. Elas depois estavam na minha posse falando o quanto foi duro para elas entrarem ali depois do que aconteceu.
Eles tentaram calar a minha irmã. Tentaram também destruir os Poderes, mas não conseguiram. Acabou que a Mari [Marielle] virou semente e vamos reconstruir o Planalto e todos os outros lugares que foram atacados.
Houve queixas sobre as condições das pessoas que foram presas, inclusive relatos de crianças e adolescentes na triagem. Como defensora dos direitos humanos, a sra. vê isso com preocupação?
A. F. – Se teve algum caso de maus-tratos tem que ser reportado, mas, até onde eu estava acompanhando, não [houve]. O que não dá é pessoas que vão contra a lei não serem intimadas a prestar esclarecimentos sobre isso.
Qual a expectativa para assumir o Ministério da Igualdade Racial?
A. F. – Eu tenho muita expectativa. Queria ter superpoderes para começar a mudar o mundo desde agora pensando na população preta. Mas sei que não posso correr com muita coisa porque não vou fazer sozinha.
Mas o meu sentimento é de muita luta. Estou animada, porque acho que precisávamos dessa guinada, desse olhar para a população negra como um todo. De alguém também de muita fibra que pudesse bater na porta de cada ministério para conversar sobre o que precisa mudar.
A sua ideia é dialogar com todos os ministérios?
A. F. – Sim. É óbvio que teremos as nossas iniciativas, mas quando estávamos, por exemplo, na primeira reunião ministerial, a primeira coisa que eu falei foi pedir cuidado com a palavra transversalidade. Porque na minha opinião, essa palavra traz: responsabilidade e equidade racial e de gênero.
Se vamos falar de transversalidade precisamos entender o peso dela e não fragilizá-la. Eu comecei abrindo assim, porque todo mundo está falando isso desde o GT da transição. Se a gente é transversal precisamos ser intersetorial, interministerial e trabalhar em conjunto.
A minha ideia é dizer para os outros ministros que temos uma pasta da Igualdade Racial e estamos aqui para fazer o nosso, mas também para auxiliá-los. Eu preciso da ajuda deles, porque sozinha pode ser que eu consiga, mas será mais difícil e mais demorado.
O que se perdeu ao longo dos últimos anos com o desmonte da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) durante o governo Temer, em 2016?
A. F. – Desde o golpe da Dilma muita coisa se perdeu, mas a principal foi a questão orçamentária. Saímos de R$ 77 milhões para R$ 17 milhões e terminamos agora com R$ 4 milhões. Eu tenho R$ 4 milhões para começar o ano. Sabemos que com esse valor talvez não conseguiremos atender nem Salvador, onde tem a maior parte da população preta.
Nas próximas semanas vamos conversar com os servidores da antiga gestão da Seppir para entender o que se passou. A questão orçamentária para mim disse muita coisa. Primeiro porque no governo passado tinha esse debate de que falar de raça era “mimimi”, que os movimentos negros eram baderneiros e não eram sérios. Nós temos que desmistificar isso e, em paralelo, brigar por uma relação orçamentária decente.
Qual pauta pretende trabalhar de imediato?
A. F. – A primeira é a Lei de Cotas. Há muitas pautas para a população negra, mas essa é especial e eu quero sair daqui com ela fortalecida.
A Lei de Cotas mudou a minha vida. Foi com ela que eu conheci várias pessoas negras e professoras incríveis. Ela tem salvado a vida de muita gente da Maré e de outras favelas que eu conheço.
Quero fazer uma discussão lá da base, do acesso à educação das crianças negras. Por isso, eu trouxe a Márcia Lima [pesquisadora da USP], que é uma expert no assunto. Vai ser o ministério da escuta, mas também da ação.
Vamos ver o que podemos fazer de imediato para que a discussão política ganhe força através do ministério, com os movimentos e com os professores universitários. Para que possamos de fato ver o resultado.
É muito fácil dialogar com pessoas que pensam como a gente. Eu estou aqui para agradar a essas pessoas, óbvio, porque eu sei que elas vão me cobrar. Mas eu tenho que tentar furar essa bolha e conversar com as pessoas que pensam diferente de mim. Eu preciso dialogar com quem acham que Lei de Cotas e genocídio da população negra são “mimimi”.
O que gostaria de deixar de legado ao final do mandato?
A. F. – Eu queria deixar para todas as mulheres, meninas adolescentes, jovens negras, principalmente de favela, periferia e quebrada, que elas possam olhar e falar que é possível sonhar, é possível estarmos vivas e é possível chegar a lugares que nos foram e vêm sendo negados historicamente.
Quero fazer um pouco de cada ação, inspirar mulheres do Brasil e do mundo afora e mostrar que o meu currículo vai muito além de ser irmã da Marielle –eu tenho muito orgulho disso.
Eu tenho colocado em prática, e a Marielle também era muito assim, chegar de peito aberto para fazer uma política de afeto.
Foi o que aconteceu com a Simone Tebet. Ela falou uma coisa que para mim e para o movimento negro não era OK [a ministra do Planejamento declarou ser “muito difícil” levar mulheres negras para trabalhar com ela em Brasília, por serem “arrimo de família”]. Eu entendi o ponto dela, acolhi, mas eu mostrei para ela que existe, mostrei que é importante discutirmos em conjunto.
Com isso, eu não quero sobrepor e dizer que eu sou melhor. Não é isso, mas eu quero falar para ela que estou aqui e se ela quiser me dar a mão eu dou a mão para nós construímos juntas. Essa é a política que eu quero deixar de legado.
Na sua posse, o presidente Lula sancionou lei que equipara injúria racial a racismo. Qual a importância dessa ação?
A. F. – É muito importante. Primeiro de tudo, porque foram oito anos de espera. Segundo, porque as pessoas achavam que era OK chamar as outras de macaca.
É uma vitória. O presidente Lula ter feito aquilo na minha posse ganha um outro peso. É dizer que estamos falando sério. Agora, são de dois a cinco anos de prisão para quem responder por injúria racial. É reparação e não vamos retroceder.
O livro recém-lançado “Minha Irmã e Eu” é uma obra de memórias que começou a ser escrita desde a morte da vereadora, em 2018. O que dessas memórias da sua irmã a sra. leva para a atuação no ministério? Qual legado ela lhe deixa?
A. F. – Eu demorei muito tempo para escrever, foi muito duro. Mas eu acho que ele tem que ter continuação, quando eu conseguir. É um legado que eu quero deixar para as meninas e gerações.
Quando paro para pensar no que vou trazer da Marielle para o ministério, não tem como não trazer tudo. Desde de entender que o fenômeno Anielle Franco acontece como aconteceu com a minha irmã. Então, preciso me precaver, estar atenta e cuidar da minha família.
O novo ministro da Justiça, Flávio Dino, mencionou a possibilidade de federalizar o caso de Marielle. O que acha dessa decisão?
A. F. – Antes a família era contra. Sim, fomos contra a federalização naquele momento. Não tinha como federalizar no governo que era. Não dava para dar de mão beijada algo que nem sabíamos de onde veio.
Agora vamos ter uma reunião com o Comitê Justiça por Marielle e Anderson, composto por Justiça Global, Terra de Direitos, Anistia Internacional, Mônica Benício e Agatha Arnaus [viúvas de Marielle e do motorista Anderson Gomes, respectivamente] e a família para pensar sobre esse próximo passo.
Não é assim tão simples. Não estamos negando que possa vir a federalizar, mas temos que ter uma reunião com todo mundo para pensarmos.
Isso também foi um tema que falei na primeira reunião ministerial. Disse que precisamos unir forças para tentar descobrir quem mandou matar a Mari, porque podemos fazer história e tentar acelerar isso mesmo sabendo que é um crime complexo.
Anielle Franco, 37
Formada em jornalismo e inglês pela Universidade de Carolina do Norte e em inglês/literaturas pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É mestre em jornalismo e inglês pela Universidade de Flórida A&M e mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet/RJ. É professora e doutoranda em Linguística Aplicada na UFRJ (federal do Rio de Janeiro).