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Política & Poder

Punir Bolsonaro por discurso de ódio depende de interpretação

Especialistas avaliam que punição ao presidente por declarações pode ser ‘tiro no pé’ de opositores

FolhaPress

16/07/2022 9h55

Angela Pinho
São Paulo-SP

Sem definição legal clara nem precedentes uniformes do STF (Supremo Tribunal Federal), o enquadramento de declarações do presidente Jair Bolsonaro (PL) como discurso de ódio depende de interpretação.

Para alguns especialistas no tema, determinadas falas de Bolsonaro poderiam ser enquadradas dessa forma e são passíveis de punição por crimes como o de racismo e de apologia de fato criminoso.
Outros veem risco de que eventual classificação dessa forma dê margem a uma censura ampla de discursos políticos no país.

O debate sobre o tema veio à tona após o assassinato do militante do PT Marcelo de Arruda, morto pelo policial penal bolsonarista Jorge Guaranho, que invadiu sua festa de aniversário gritando, segundo testemunhas, palavras de ordem a favor do presidente. Na sexta-feira (15), a Polícia Civil do Paraná anunciou a conclusão do inquérito, disse que o assassinato teve motivo torpe e que, tecnicamente, não será enquadrado como crime de ódio, político ou contra o Estado democrático de Direito, por falta de elementos para isso.

Acusado por alguns de incitar violência, Bolsonaro se defendeu em uma ofensiva por sua imagem. Disse dispensar o apoio de quem pratica violência contra opositores e telefonou para uma ala da família de Marcelo mais simpática a ele. No telefonema, dedicou-se mais a se defender do que a se solidarizar com os parentes do petista assassinado.

Representantes dos partidos que formam a coligação do ex-presidente Lula foram à PGR (Procuradoria Geral da República) para que Bolsonaro seja investigado por crimes de violência política, abolição violenta do Estado democrático de Direito, incitação ao crime e apologia de crime ou criminoso.

Não há no Código Penal brasileiro um crime específico de discurso de ódio. Por isso, eventuais declarações interpretadas dessa forma devem ser enquadradas em tipos penais como os citados na representação à PGR ou em outros como o de racismo, por exemplo.

O Plano de Ação de Rabat da ONU, de 2013, estabelece seis condições para avaliar eventual crime em uma declaração. São elas:

  • 1) o contexto social e político em que a fala foi feita;
  • 2) a categoria do orador;
  • 3) a intenção;
  • 4) o conteúdo e a forma do discurso;
  • 5) A extensão da discussão;
  • 6) e a probabilidade de causar danos.

A frase de Bolsonaro que mais tem sido associada a discurso de ódio é sua declaração sobre “fuzilar a petralhada”, dita em evento de campanha em 2018. “Vamos fuzilar a petralhada toda aqui do Acre. Vamos botar esses picaretas pra correr do Acre. Já que eles gostam tanto da Venezuela, essa turma tem que ir pra lá. Só que lá não tem nem mortadela galera, vão ter que comer é capim mesmo”, afirmou na ocasião.

Também têm sido lembradas outras declarações como “povo armado jamais será escravizado” ou o discurso com ameaças golpistas do dia 7 de setembro, quando o presidente afirmou que as únicas opções para ele eram ser preso, morto ou a vitória na eleição, afirmando na sequência que nunca seria preso. Voltou ao debate também o evento no clube Hebraica do Rio de Janeiro, em 2018. “Eu fui num quilombola em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador eles servem mais”, disse Bolsonaro à época.

Especialistas

Para o advogado e professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Gustavo Binenbojm, as falas sobre “fuzilar a petralhada” e a proferida no clube Hebraica, em especial, são exemplos de que em diversos momentos Bolsonaro proferiu discursos que incitam a violência em razão de alguma característica do grupo alvo. Ele lembra declaração do juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Oliver Wendell Homes Jr., de que não se pode proteger a liberdade de expressão de alguém que falsamente grite “fogo” em um teatro lotado.

Para Binenbojm, o STF deveria ter padrões mais claros de julgamento para os chamados casos de discurso de ódio. Ele cita a disparidade entre a decisão do tribunal de condenar o deputado Daniel Silveira (PTB), afastando a imunidade parlamentar, e a de absolver Bolsonaro no caso das falas no clube Hebraica sob o manto justamente da imunidade parlamentar.

O advogado André Perecmanis também diz não ter dúvida de que a fala sobre “fuzilar a petralhada” configura discurso de ódio. “É uma fala pública direcionada a um grupo identificável, com um discurso de extermínio”, diz. Mas, assim como Binenbojm, Perecmanis vê como praticamente nula a chance de Bolsonaro ser responsabilizado por essas falas durante seu mandato, já que eventual ação penal teria que ser proposta pelo procurador-geral da República, que em diversos momentos se mostrou alinhado ao presidente.

Para Samuel Vida, professor da Faculdade de Direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), frases isoladas não são os únicos elementos que devem ser levados em conta quando se analisa discurso de ódio na comunicação de Bolsonaro. Em sua avaliação, é preciso considerar também outros elementos, como o gestual da arma com as mãos e declarações cifradas como “você sabe como você deve se preparar” para as eleições. “Não estamos diante de um caso isolado, de uma incontinência verbal, estamos diante de episódios que devem ser vistos como possivelmente conectados”, diz. “Não é à toa que se fala em gabinete do ódio. É preciso investigar para saber de quem é a coordenação e qual papel ocupa o presidente.”

Vida afirma ver com especial preocupação a vinculação feita por Bolsonaro entre a disputa política e o uso de armas, como quando ele diz que “povo armado jamais será escravizado” ou que a bandeira só será vermelha “se for preciso o nosso sangue para mantê-la verde e amarela”.

Apesar de compartilhar a preocupação com as falas de Bolsonaro, outros pesquisadores de liberdade de expressão manifestam o receio de que eventual restrição à sua comunicação, sob o enquadramento do discurso de ódio, possa ser usada no futuro para uma ação ampla de censura no país. Para a advogada Arianne Nery, pesquisadora do Pleb – Grupo de Pesquisa sobre Liberdade de Expressão no Brasil da PUC-Rio, a falta de coerência entre as decisões no Judiciário cria insegurança na análise do tema.

O professor Fábio Carvalho Leite, coordenador do grupo, avalia que criminalizar o discurso de Bolsonaro pode ser um “tiro no pé”, ou seja, pode dar argumentos para censurar pessoas que justamente hoje se opõem a esse tipo de discurso. Ele cita o exemplo do mote “fogo nos fascistas”, em comparação a “fuzilar a petralhada”. Ainda que se possa usar argumentos para diferenciar uma frase de outra, também é possível de alguma forma equipará-las, diz Leite, o que seria problemático. “Ninguém metralhou a petralhada depois do discurso de Bolsonaro, assim como ninguém está pondo fogo em fascistas ou apoiadores do Bolsonaro.”

Ele não nega a preocupação com o aumento dos episódios e tensão principalmente contra pessoas do PT a três meses da eleição, mas coloca em dúvida a possibilidade de o direito resolver a questão. “Não fazer nada [em relação a esses discursos] é um problema, mas fazer também é”, resume.

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