FERNANDA MENA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Há dez dias na Europa para denunciar omissões do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, a kaiowá Inayê Lopes e o guarani Josiel Machado assistiram a uma reviravolta em relação à principal bandeira dos povos originários hoje no país: a questão do marco temporal.
“Violência, desmatamento, ataque, massacre, demarcação de terra, despejo”, enumerou Inayê ao microfone diante de eurodeputados, em Bruxelas (Bélgica), sobre a situação em Mato Grosso do Sul, pouco antes de se emocionar com a votação no STF (Supremo Tribunal Federal) que rejeitou a tese do marco temporal, considerada inconstitucional por 9 dos 11 ministros da corte.
A tese determina que as terras indígenas devem se restringir a áreas ocupadas pelos povos quando a Constituição de 1988 foi promulgada.
“Acompanhamos a votação de longe e ficamos muito felizes de vencer a primeira batalha”, conta Inayê.
“Mas, infelizmente, a comemoração foi em vão porque, do outro lado [no Senado], ressuscitaram o marco temporal, que é um projeto genocida para os povos indígenas. Fiquei indignada com os senadores”, desabafa ela, já em Genebra.
“Não queremos o Brasil inteiro como terra indígena. Queremos apenas nossos territórios tradicionais porque já estávamos aqui quando os colonizadores chegaram e estamos há 523 anos lutando para sobreviver”, afirma Inayê.
Na última quarta-feira (27), mesmo dia em que o STF concluiu o julgamento do marco temporal, o Senado aprovou, em votação expressa, o texto-base da proposta do marco temporal das terras indígenas por 43 votos a 21, numa reação dos senadores ao julgamento no Supremo.
“Os políticos só pensam na economia e no dinheiro, não pensam em bem-estar. Eu, que sou historiadora e nasci junto com a Constituição, fico indignada. A Constituição garantiu, em seus artigos 231 e 232, nosso direito aos territórios tradicionais, mas isso nunca foi cumprido”, avalia Inayê.
Apesar de ter comemorado a decisão do Supremo, a kaiowá é crítica à proposta de indenização dos latifundiários por terras indígenas supostamente adquiridas de boa fé. “A gente se pergunta porque indenizar quem enriqueceu com o nosso território sem indenizar famílias que tiveram gente assassinada por fazendeiros nunca punidos”, questiona.
Ela se refere aos 795 assassinatos de indígenas ocorridos nos últimos quatro anos, segundo levantamento do Cimi (Conselho Indígena Missionário), em contexto de conflitos fundiários em torno de terras indígenas no país. Os povos guarani e kaiowá de Mato Grosso do Sul estão entre as principais vítimas dessas mortes, e o estado também concentra as maiores taxas de suicídio entre indígenas do país.
Atualmente no Brasil, 62% das terras indígenas e reivindicações territoriais existentes estão pendentes de regularização administrativa, ou seja, de demarcação e sua homologação.
Para buscar pacificar os conflitos por terras e proteger os indígenas de Mato Grosso do Sul, o Ministério dos Povos Indígenas criou nesta semana um gabinete de crise dedicado aos povos guarani e kaiowá do estado.
Os encontros das lideranças guarani e kaiowá com integrantes do Parlamento Europeu teve o objetivo de exigir da União Europeia (UE) coerência entre as ações de política externa e de política comercial do bloco, em especial no âmbito do acordo entre a UE e o Mercosul. “Eles [europeus] não podem comprar o que é produzido em terras indígenas invadidas”, afirma a líder kaiowá, que é vereadora na cidade de Antônio João (MS).
Aos eurodeputados ela denunciou também os danos causados pelo intenso uso de agrotóxicos produzidos por empresas europeias, mas proibidos de serem utilizados na própria UE.
Segundo os líderes indígenas, além de contaminar o solo e as águas dos rios da região, afetando a saúde de suas populações, os produtos são utilizados como arma química por alguns grupos que ocupam territórios indígenas.
Inayê e Josuel pediram ainda medidas concretas de apoio à garantia de direitos dos povos indígenas brasileiros, a começar pela questão fundiária, que se tornou saliente nos debates multilaterais num contexto de crise climática.
A dupla também teve encontros com o relator especial da ONU para o direito à alimentação, Michael Fakhri, e com o relator sobre os direitos dos povos indígenas, José Francisco Cali Tzay, que condenou a movimentação do Senado durante sua apresentação à Comissão de Direitos Humanos da ONU.
Segundo ele, a questão do marco temporal extrapola o debate fundiário e indígena do Brasil. “Isso é para toda a humanidade.”
“Os senadores não aceitam nem respeitam os povos originários, mas vão ter de nos engolir porque não vamos parar de lutar”, disse Inayê.
Ela e o líder guarani, que juntos representam a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá (Aty Guasu), foram acompanhados nesta viagem pela FIAN (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas) e pelo Cimi. A comitiva também participou da 54ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, e da análise do Brasil pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
“As denúncias que vim fazer aqui dão medo na gente, mas sou uma mulher corajosa para enfrentar tudo isso”, disse. “Alguém precisa falar por nós.”