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Política & Poder

Lula tem brechas para falar a eleitor de Bolsonaro, mas acenos exigem cautela

A avaliação é que parte do eleitorado se aglutinou em torno do atual presidente por causa das circunstâncias da campanha

FolhaPress

19/11/2022 7h20

CARLOS COSTA/AFP

Joelmir Tavares
São Paulo, SP

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem “frestas” para romper o paredão de 58 milhões de eleitores de Jair Bolsonaro (PL) se quiser avançar com seu discurso de pacificação nacional, mas precisa calibrar suas falas e evitar generalizações, no entendimento de quem estuda o bolsonarismo.

A avaliação de que há espaço para diálogo parte do pressuposto de que parte do eleitorado se aglutinou em torno do atual presidente por causa das circunstâncias da campanha, sem necessariamente pertencer à ala mais radical, simbolizada hoje pelos manifestantes que contestam o resultado das urnas.

Lula teve 60 milhões de votos, na menor diferença entre o primeiro e o segundo colocado da corrida presidencial desde a redemocratização (1,8 ponto percentual). Desde a vitória, o ex-presidente diz que não buscará revanche e que governará para todos, já que “não existem dois Brasis”.

Na prática, o clima tem sido de atrito mesmo dentro da coalizão que se formou em torno do petista, unindo de liberais a comunistas. Economistas e empresários que votaram nele por refutarem Bolsonaro criticam o estímulo à dicotomia entre desenvolvimento social e responsabilidade fiscal.

O ex-presidente atacou o teto de gastos reiteradas vezes nos últimos dias. “Se eu falar isso, vai cair a Bolsa, vai aumentar o dólar? Paciência”, disse na quinta-feira (17). A ironia foi rebatida pelos economistas Arminio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, que cobraram mudança de postura.

Para a cientista política Camila Rocha, uma das principais pesquisadoras da base bolsonarista, o grupo político do presidente derrotado foi hábil ao se apresentar como sinônimo de conservadorismo e se firmar como encarnação do antipetismo, sentimento decisivo para os rumos do pleito deste ano.

O contingente de votos foi se ampliando com a adesão em peso do segmento evangélico e de fatias que votaram nele por fatores como assédio eleitoral —os casos de patrões coagindo funcionários explodiram na reta final— e outras formas de pressão praticadas em favor de Bolsonaro.

Além das medidas eleitoreiras, com a liberação de valor extra do Auxílio Brasil e novos pagamentos para caminhoneiros e taxistas, houve exemplos de intimidação. A TV Globo flagrou em Mato Grosso do Sul suspeita de ameaça da perda de benefícios do governo a moradores que não votassem em Bolsonaro.

“Vários fatores acabaram inflando o eleitorado dele, de forma que é possível afirmar que a maioria desses 58 milhões não é propriamente bolsonarista”, diz Camila, que define os representantes do bolsonarismo como aqueles que reproduzem fielmente o discurso do presidente e são, como ele, reacionários.

“Uma boa parte votou nele por falta de opção no campo da direita, por ser o menos pior ou por pura rejeição a Lula.” A doutora pela USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) diferencia os convictos dos “críticos, que provavelmente são maioria no eleitorado dele”.

Pesquisa do Datafolha na semana do segundo turno apontava 21% dos eleitores como bolsonaristas convictos.

Mesmo entre os entrevistados que declaravam voto no atual mandatário às vésperas do pleito, 1% avaliava o governo dele como ruim ou péssimo e 19% como regular. O percentual dos que diziam nunca confiar nas afirmavam do chefe do Executivo era de 4%.

Outro dado que chamava a atenção: entre apoiadores de Bolsonaro, 9% respondiam que a situação econômica do país piorou nos últimos meses. E 6% consideravam a sua própria condição financeira prejudicada. A maioria (67% e 62%, respectivamente) dizia, porém, que os quadros haviam melhorado.

A aparente contradição está na raiz do que a socióloga Esther Solano classifica como “bolsonarista parcial”, que se sente identificado com alguns elementos do bolsonarismo, sem abraçar o pacote completo. “Há a vertente religiosa, a nacionalista, a lava-jatista. Não é algo homogêneo”, explica.

Segundo ela, que é professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), a grande maioria do eleitorado de Bolsonaro repudia discursos de ódio e rejeita o fascismo. Esther diz que um fenômeno que ilustrou bem essa fluidez foi a existência de eleitores flutuantes, “sem uma fascinação ideológica”.

Raciocínio parecido foi expresso pelo pastor Ed René Kivitz, da Igreja Batista de Água Branca, em entrevista à Folha entre o primeiro e o segundo turno: “Nem todo bolsonarista é nazista, mas todo nazista é bolsonarista. Todo supremacista, quer seja social, racial, de gênero, é bolsonarista”.

Quando a eleição acabou, a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP), aliada de Lula, publicou um vídeo propondo uma trégua com quem votou no adversário.

Disse saber que esses eleitores foram xingados de nomes como fascista, miliciano e genocida —e que “algumas pessoas merecem” esses rótulos, “mas elas estão muito longe de serem maioria”.

Para Tabata, muitos dos que optaram pelo presidente têm desejos similares aos de apoiadores do petista: um futuro melhor para seus filhos, mais segurança pública e políticas de saúde e educação.

O presidente eleito disse na primeira declaração após a vitória ter a intenção de “estabelecer a paz entre as famílias e entre os divergentes” para que o país “volte a viver democraticamente, harmonicamente”. No discurso, lido, ele afirmou que “a ninguém interessa viver num país dividido”.

Minutos depois, na mesma noite de 30 de outubro, ele usou termos mais duros ao falar de improviso para apoiadores na avenida Paulista. Disse que a frente liderada pelo PT derrotou o autoritarismo e o fascismo, naquilo que “foi uma campanha da democracia contra a barbárie”.

Referências assim são “coisas que vão incomodando”, na visão da cientista política Deysi Cioccari. Para ela, incorrer em generalizações que soem negativas ou até mesmo ofensivas é um erro grave na pretensa tentativa de Lula de buscar conciliação com o outro lado.

“Vai precisar de muito esforço de todas as partes para que esse diálogo aconteça. O Brasil na eleição se dividiu em termos sociais, não mais entre partidos políticos”, diz ela, que é autora do livro “Jair: 1991-2022”, sobre a trajetória do presidente em Brasília.

Observando que a cisão também tem traços geográficos, com a derrota de Lula em todos os estados do Sul, do Centro-Oeste e do Sudeste (à exceção de Minas Gerais), Deysi diz que um caminho para o petista quebrar o gelo com o eleitorado bolsonarista é se aproximar dos governadores de oposição.

Segundo Camila Rocha, que conduziu nos últimos anos vários estudos com bolsonaristas, o primeiro passo para se comunicar com o grupo é jamais estigmatizar.

“Não dá para tomar a parte pelo todo. De fato, existe um segmento minoritário que é autoritário ou potencialmente fascista, mas continuar se referindo às pessoas como ‘gado’ ou massa de ignorantes é algo deletério. É um erro pensar que a priori são 58 milhões de opositores”, afirma.

Mais do que a linguagem e a escolha do vocabulário, o desafio para Lula na tarefa de estabelecer pontes será o de governar para setores da população que se distanciaram da esquerda por razões práticas e foram de alguma maneira acolhidos pelo bolsonarismo, analisa Esther Solano.

“Falta conseguir falar com as bases populares religiosas e entender as novas dinâmicas sociais. Por exemplo, falta construir diálogo com essa classe média baixa que passa por um processo de precarização do trabalho, mas se reconhece no discurso meritocrático, do empreendedorismo, da liberdade”, diz ela.

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