ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
A ausência do primeiro escalão do governo Lula (PT) no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida nesta quinta-feira (12), feriado dedicado a uma das imagens mais veneradas pelo catolicismo brasileiro, é reveladora de como o petismo ainda tateia na relação com as bases religiosas do país.
Recuperando-se de cirurgias no quadril e na pálpebra, e com recomendação médica para não viajar, a falta do presidente já era esperada. Mas ele também não foi à festa em Aparecida (SP) nos seus dois primeiros mandatos.
Em 2006, por exemplo, um Lula de olho na reeleição ocupou seu 12 de outubro com um encontro com reitores de universidades federais e um comício em Goiás. Enquanto isso, seu principal adversário naquele pleito, de conhecida fé católica, rezava em Aparecida com a esposa.
Cambalhotas da história trataram de posicionar Geraldo Alckmin (PSB) como atual vice-presidente do ex-rival. O ex-tucano, figurinha fácil na basílica dedicada à santa, neste ano não foi à cidade. Teve agenda em São Paulo na véspera, mas fez bate-volta para Brasília.
Segundo sua assessoria, Alckmin tem compromisso nesta sexta (13) e “infelizmente não conseguiu conciliar as agendas”. Programou-se para ir com a família a uma missa na Esplanada dos Ministérios.
O Palácio do Planalto avisou à reportagem que não comentaria por que não enviou à celebração ninguém de grande porte em nome do presidente. De acordo com o santuário, apenas André Ceciliano, ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio e hoje secretário especial de Assuntos Federativos da Presidência, representou o governo federal.
Quem passou por lá foi o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), ex-ministro de Jair Bolsonaro (PL).
Em 2022, em confronto acirrado com Bolsonaro, Lula decidiu que seria melhor não ir a Aparecida e optou por um ato no carioca Complexo do Alemão. É verdade que aquela agenda lhe causou alguma dor de cabeça eleitoral: bolsonaristas usaram uma imagem dele com um boné do “CXP”, sigla para “complexo”, e forjaram a fake news de que a abreviação seria de “cupincha”, suposta alusão a facções criminosas.
Mas a campanha petista ao menos teve a satisfação de ver Bolsonaro viver um dia desastroso em Aparecida. Dom Orlando Brandes, o arcebispo local, já tinha irritado bolsonaristas ao afirmar em homilia que era preciso “vencer os dragões do ódio e da mentira”. Para piorar, apoiadores do então presidente fizeram arruaça no entorno da basílica, xingando jornalistas, bebendo álcool e vaiando um padre que, após a passagem de Bolsonaro, disse não ser aquele o dia ideal para pedir voto, e sim bênção.
Se na ocasião a equipe de Lula achou que ele ganhou pontos ao não comparecer, sua praxe de pular grandes eventos religiosos é vista com ressalvas mesmo dentro do PT. O eleitorado de um país onde nove em cada dez pessoas dizem acreditar em Deus valoriza a fé de seus políticos.
A relevância do fator religioso só fez crescer desde que Lula encerrou seu segundo mandato, em 2010. Prestar contas a esse eleitor se firmou como pedágio político. O petista, por exemplo, nunca havia se preocupado em justificar a ausência na Marcha para Jesus, ponto alto do calendário evangélico nacional.
Mudou de ideia neste ano: enviou uma carta ao idealizador da caminhada, apóstolo Estevam Hernandes, alinhado a Bolsonaro em 2022, e ainda despachou o advogado-geral da União para representá-lo. Jorge Messias foi aplaudido ao falar da fé evangélica e vaiado ao se apresentar como emissário do chefe.
Esse outro segmento cristão, que vem crescendo na população a ponto de ameaçar a maioria católica, é um calombo eleitoral no qual parte da esquerda agora tenta trabalhar.
Mas pesquisadores da religião alertam que não dá para descuidar da base católica. A pergunta é: de qual catolicismo estamos falando? Para Emanuel Freitas, professor de teoria política da Universidade Estadual do Ceará, ainda que essa seja a crença declarada de metade do povo, ela é mais frouxa para gerar engajamento comunitário do que a evangélica.
“O [bloco católico] que reproduz melhor o ethos evangélico é aquele em que Lula é mais fraco, como os tradicionalistas e carismáticos”, diz. São uma minoria barulhenta e com capilaridade nas redes sociais. Caso da Canção Nova, movimento carismático que tem pontos de confluência com o pentecostalismo.
Vide a oratória mais energizada de seus padres e a inclinação política -seus membros são mais simpáticos ao bolsonarismo do que a média católica.
É nesse ecossistema conservador que fluem notícias como a do prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues (PSOL), dizendo que o Círio de Nazaré, popular festa católica, não é mais da Igreja, e sim do povo. Estava ao lado do casal Lula e Janja, em 2022. A defesa de um caráter universal da Nossa Senhora de Nazaré acabou circulando como um vilipêndio à fé católica.
Há espaço ainda para fake news sobre a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), vista por setores mais à direita como aderente ao ideário comunista. Até o papa Francisco é alvo de fúria, seja pela carta que mandou a Lula em 2019, pedindo que não desanimasse (ele ainda estava preso por condenação na Lava Jato), ou por falas rotuladas de progressistas, como as de tom ambientalista.
Bolsonaro foi mais bem-sucedido com seu entrosamento religioso, segundo Freitas. “Como passou quatro anos indo às igrejas, quando chegou na eleição, não podiam acusá-lo de fariseu, de alguém que usa a religião de modo eleitoreiro, embora seja isso.”
Lula é católico e, no passado sindical, aproximou-se de figuras da proa progressista da Igreja, como dom Cláudio Hummes, que apoiou as greves do ABC na ditadura. Frei Betto estava na casa do sindicalista quando o regime militar o prendeu, em 1980.
O PT nasce nos anos 1980 com grande influência dessas alas católicas. Hoje, contudo, “você tem uma igreja cindida”, e uma pulsante “ojeriza à esquerda” ganha força nos anos 2010, afirma o docente da UECE.
Para o antropólogo Rodrigo Toniol, que dá aulas na UFRJ, “a relação do catolicismo com PT foi diminuindo” na medida em que parcelas mais progressistas da Igreja perdiam espaço.
Ser católico nunca demandou ser praticante, e isso pode influenciar nas urnas, afirma. “Há uma diferença entre com evangélicos na maneira de produzir comunidade. Católicos nunca dependeram de ir à igreja para construir sua identidade. Claro que isso tem efeitos diferentes na hora de conseguir ou não orientar votos. Essa comunidade que assiduamente frequenta cultos pode construir seu imaginário político com frequência maior.”
Mas as disputas internas no catolicismo podem bagunçar esse jogo. Abster-se de Aparecida não chega a virar um fato político para Lula, não um de relevo. Toniol avalia, porém, que “certamente ele vai ter que contornar isso nos próximos anos”.