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Arapongagem: Ibama quer comprar software de empresa que possibilitou Abin Paralela

A Cognyte vendeu para a Abin o software FirstMile, usado para monitorar autoridades públicas no país. Valor negociado é de R$ 3,5 milhões

Vítor Mendonça

23/04/2024 5h00

Quase três meses após a Operação Vigilância Aproximada, coordenada pela Polícia Federal contra a Abin Paralela, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) considerou a empresa israelense Cognyte como habilitada para a compra de um software investigativo, cujo uso seria para a apuração de crimes ambientais, como grilagem, mineração, contrabando de animais, entre outros.

Cognyte, antiga Verint – e Suntech no Brasil –, é proprietária do sistema de espionagem de celulares FirstMile, utilizado durante a Abin Paralela para monitorar autoridades públicas no país – em especial as opositoras do ex-presidente Jair Bolsonaro.

A empresa israelense é a provável vencedora da licitação até então, uma vez que durante a fase de contestação pelos concorrentes, finalizada nesta segunda-feira (22), não houve recursos interpelados contra o êxito da companhia registrados no sistema de compras do Governo Federal, o que garante a vitória da Cognyte no processo.

A proposta feita pela Cognyte é para a contratação do produto Orbis Web Intelligence Center, na versão Premium, que atende aos requisitos de investigação solicitados pelo órgão em edital, publicado em 8 de março de 2024. O valor inicial proposto para contratação era de R$ 5,841 milhões, mas durante a concorrência entre as empresas, uma delas ofertou o menor valor, de R$ 3,565 milhões.

A companhia que ofereceu a assinatura de 10 licenças de usuários – conforme solicitado em edital – para uso de um sistema de investigação similar ao Orbis pelo menor valor, entretanto, foi considerada inabilitada para a continuação do processo. No dia 3 de abril, às 15h14, o pregoeiro solicitou à Cognyte que negociasse o mesmo valor da empresa anterior ou outro valor menor.

Apenas dois minutos depois, às 15h16 do mesmo dia, a Cognyte aceitou a negociação do sistema Orbis pelo menor valor ofertado, de R$ 3,5 milhões.

O software em questão, porém, não é de espionagem direta nem utiliza a geolocalização da mesma forma que o FirstMile. A busca de dados do programa negociado com o Ibama é feita a partir de dados abertos, com alcance investigativo extenso, capaz de estabelecer conexões entre pessoas com diversas variáveis, baseando-se apenas em publicações abertas.

O programa traça perfis e faz um dossiê completo de indivíduos se baseando no histórico encontrado em fontes abertas, mídias sociais e na internet oculta (Deep e Dark Web). Com o auxílio de Inteligência Artificial e a automação da investigação, o Orbis Web Intelligence Center monta um relatório completo com informações detalhadas do alvo investigado – com quem interage, com quem já se encontrou, entre outros aspectos.

Para isso, o programa utiliza ferramentas de reconhecimento facial e o rastreamento das chamadas pegadas digitais – vestígios eletrônicos da passagem por determinados sites e redes pelo Protocolo de Internet (IP), que funciona como um CPF de cada equipamento computacional, variando desde computadores a telefones celulares.

Confira no vídeo abaixo como a ferramenta funciona na prática. O material foi obtido com exclusividade pelo Jornal de Brasília e é utilizado dentro da proposta comercial da empresa:

Justificativa

De acordo com a justificativa do Ibama para a licitação, expressa por meio de Estudo Técnico Preliminar (ETP), o uso do software possibilita “extrair de fontes abertas informações metadados e informações geográficas que poderão ser usadas para a construção de conhecimento detalhado das redes de ilícitos, que poderão servir como pontos de partida para outras análises e investigações” feitas pelo órgão, conforme explica o edital.

Segundo os dados apresentados, entre 2017 a 2023 foram registradas 478 denúncias de crimes ambientais na Ouvidoria do órgão, todas envolvendo trocas de mensagens dentro do aplicativo WhatsApp. Os crimes ambientais praticados na internet (venda, divulgação e uso das redes para atividades ilícitas) foram os mais expressivos, sendo 172 ocorrências – cerca de 35,9% das incriminações.

Foto: AFP

“A aquisição de Software de Pesquisa e Análise de Fontes Abertas permitirá a busca de informações em redes sociais de forma mais célere e organizada, incluindo a extração das informações em um banco de dados estruturado passível de cruzamento com outros bancos de dados corporativos. […] Portanto, contribuirá para aumentar o poder de análise de inteligência e por consequência, diminuirá o tempo, recursos financeiros e humanos a serem empregados na identificação e qualificação de infratores ambientais”, afirmou o órgão em justificativa no ETP.

No mesmo documento, o Ibama destaca ainda que, pelo monitoramento das redes sociais de interesse em operações, será possível fazer a antecipação em tempo hábil de ameaças à integridade física dos agentes e dos bens a serem utilizados na ação. Dessa forma, novas estratégias poderiam ser tomadas.

A dificuldade identificada pelos 53 agentes do Ibama empregados neste tipo de investigação de inteligência se encontra durante a apuração dos alvos das operações. De acordo com o órgão, o impasse está na criação de tarefas automatizadas de busca de maneira anônima, com rastros digitais mínimos. A proposta inclui 30 dias de treinamento para os analistas que ficarão responsáveis pela investigação e coleta dos dados pelo Orbis.

Em nota, o Ibama se absteve de manifestação quanto à influência da Cognyte na Abin Paralela e informou que “está realizando a contratação seguindo todos os procedimentos legais, inclusive as observações feitas pelo Tribunal de Contas da União em contratações similares”. O órgão alegou ainda que “sistemas semelhantes são utilizados pelo Ministério Público, polícias judiciárias, tribunais de justiça, entre outros”.

Questionado sobre quais e como serão manejados os critérios de segurança, fiscalização, produção de relatórios e monitoramento dos analistas para evitar o uso abusivo da ferramenta para interesses pessoais ou de terceiros, o Ibama informou apenas que a ferramenta deverá possibilitar a auditagem dos dados coletados, a fim de ter um melhor controle do uso do programa.

Entretanto, não foi especificada a forma como o órgão faria a auditoria de tais dados nem como garantiria a lisura prévia das investigações, sem abusos de uso das ferramentas. Também não foram referenciados padrões e critérios já utilizados internacionalmente ou por outros órgãos que delimitariam o uso do software.

Confira a nota do órgão na íntegra:

“O Ibama está realizando a contratação seguindo todos os procedimentos legais, inclusive as observações feitas pelo Tribunal de Contas da União em contratações similares.

A ferramenta informatizada a ser contratada visa coletar dados disponibilizados publicamente na rede mundial de computadores para combater ilícitos ambientais, sem qualquer desrespeito à legislação vigente.

Sistemas semelhantes são utilizados pelo Ministério Público, polícias judiciárias, tribunais de justiça, entre outros. Além disso, a ferramenta deve possibilitar auditagem dos dados coletados, para melhor controle do seu uso.”

Insegurança e discussão judicial

Foto: Freepik

O edital do Ibama estabelece “a contratação de solução integrada de inteligência para, por meio de motores de buscas, realizar monitoramento, disparo de alertas, coleta, transformação, análise e estabelecimento de vínculos de dados disponíveis na internet provenientes de fontes abertas”.

Dessa forma, as fontes abertas em questão abrangem mídias sociais, redes sociais, Surface Web (Internet superficial, comum), Deep Web e Dark Web, a fim de identificar alvos, atores ilícitos e ter consciência de situações criminais, além da produção de alertas e relatórios. Dentro da contratação estão inclusos também a “prestação de serviços de instalação, capacitação, operação assistida e suporte técnico operacional, atendendo os requisitos de Inteligência de Dados Abertos (Open Source Intelligence – OSINT)”.

De acordo com Vinícius Silva, pesquisador da Data Privacy Brasil – instituição de proteção de dados e direitos digitais no Brasil e no mundo – os recursos oferecidos pela Cognyte de fato têm grandes potenciais para a proteção contra crimes ambientais, mas também há uma capacidade ampla de vigilância nociva e constante de um indivíduo caso não haja a devida fiscalização das ferramentas.

Vinícius Silva

Em dezembro do ano passado, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 84 foi proposta ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para o reconhecimento da omissão do Congresso Nacional por não regulamentar o uso de ferramentas de monitoramento secreto (softwares espiões) de aparelhos de comunicação pessoal, como celulares e tablets, por órgãos e agentes públicos.

Ao tratar a respeito dos softwares de espionagem como o FirstMile, a ADO 84 expressa que o ponto central da controvérsia judicial é quanto ao “uso secreto e abusivo desses softwares e ferramentas, sem autorização judicial, tampouco limites ou salvaguardas, de forma contrária à tutela do interesse público e aos deveres de proteção dos direitos fundamentais, que se impõem em um Estado de direito”, explica o texto.

Entretanto, além do aspecto secreto do uso das ferramentas e da necessidade de autorização judicial para tal, a ADO 84 estabelece que sejam fixadas balizas para a utilização das tecnologias de inteligência de monitoramento, com termo de responsabilidade e uso restrito à indicação de número de inquérito policial ou procedimento investigativo.

Histórico

Palácio da Justiça na Esplanada dos Ministérios. Foto: Fábio Rodrigues-Pozzebom

Ainda em março de 2020, no início da pandemia da covid-19, a Verint, atual Cognyte, chegou a oferecer 40 licenças de uso do mesmo programa de Solução de Inteligência em Fontes abertas, Mídias Sociais, Deep e Dark Web ao Ministério de Justiça e Segurança Pública (MJSP), à época comandado pelo então ministro, Sergio Moro. O valor de negociação era de R$ 11.223.853,36 – pouco mais de R$ 280 mil por usuário, portanto cerca de 27% mais barato que o oferecido atualmente.

Um ano depois, em março de 2021, outra proposta é feita para o mesmo ministério, já com o novo ministro André Mendonça. O valor desta vez foi de R$ 6.950.000, ofertado para 60 usuários simultâneos – aproximadamente R$ 115 mil para cada, cerca de 207% a menos que o valor da nova compra.

Ambas as propostas de negociação não foram aceitas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Entretanto, o Ibama e a empresa israelense já haviam se encontrado em três videoconferências pela plataforma Teams no ano passado – uma anterior ao Estudo Técnico Preliminar, e as outras duas depois de dois meses da finalização do ETP. Os encontros eram para tratar dos sistemas operacionais que a empresa tem a oferecer ao órgão fiscalizador.

Sabendo que o Estudo Técnico Preliminar foi finalizado em 11/07/2023, as datas dos encontros entre o Ibama e a Cognyte foram:

  • 16 de junho de 2023 (realizado pelo Ibama Brasília)
  • 21 de setembro de 2023 (realizado pelos Ibamas Brasília e Fortaleza-CE)
  • 22 de setembro de 2023 (realizado pelos Ibamas Brasília e Fortaleza-CE)

Orbis x FirstMile

Enquanto o sistema Orbis trabalha com a coleta de dados abertos da internet e também da Deep e Dark Web, o FirstMile trabalha com uma estrutura de telecomunicação a partir de uma falha do sistema dos algoritmos de transmissão de dados das operadoras de telefonia, que transmitem a informação de onde a pessoa está passando. Detecta, a partir de uma torre de telefonia mais próxima, a localização a partir da qual o celular está dialogando com a antena.

“É como se ele mandasse um sinal de aviso ao celular perguntando onde ele está. O sinal é devolvido contando onde ele está”, afirmou. Na OSINT é outra tecnologia completamente diferente, via satélite, com dados abertos. Ele não atua dentro da infraestrutura de celulares para roubar as informações, mas ele busca as informações que já estão abertas via satélite”, destacou Vinícius.

Esse tipo de sistema é utilizado na coleta de dados dos acontecimentos entre Israel e Palestina durante a guerra, no combate ao tráfico no México, na investigação de mortes e assassinatos na guerra da Síria, entre outros. No Brasil, ferramentas similares já foram utilizadas em territórios de exceção para investigação tanto de crimes quanto possíveis abusos policiais.

Um dos cases apresentados pela Cognyte durante vendas a possíveis clientes é o da análise do PCC e suas ramificações na América do Sul dentro da Web comum e dentro da Dark Web, utilizando o recurso para conhecer os passos, vocabulários, líderes, planos de expansão e características do grupo.

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