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Política & Poder

Apagão social em proposta de Orçamento de 2023 desafia vencedor das eleições

A expectativa da pasta é que parte do Orçamento seja recomposta com verbas de emendas do relator

FolhaPress

27/09/2022 14h13

Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil

Idiana Tomazelli, Mateus Vargas e Marianna Holanda
Brasília, DF

A proposta de Orçamento de 2023 ameaça criar um apagão em políticas sociais no país e impõe um desafio significativo ao presidente eleito e ao Congresso Nacional, que precisarão atuar em conjunto para recompor esses gastos até o fim de dezembro deste ano.

O prazo é exíguo para evitar que, em janeiro, 20,6 milhões de famílias tenham um corte de R$ 200 no valor do Auxílio Brasil, 8,4 mil centros de assistência social reduzam seus atendimentos e 125 mil obras de casas populares sejam interrompidas -outras 15 mil já foram adiadas.

O atendimento a 21 milhões de famílias por meio do Farmácia Popular, que distribui medicamentos de forma gratuita ou subsidiada, também está ameaçado e pode parar a partir de maio se nada for feito.

Os programas citados são apenas alguns exemplos. A peça orçamentária enviada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) em 31 de agosto trouxe cortes significativos em diversas ações sociais na saúde, na habitação e na assistência social para atender o teto de gastos (regra que limita as despesas federais).

Enquanto o futuro dessas políticas públicas vira incerto, os parlamentares contam com uma reserva de R$ 19,4 bilhões para as emendas de relator -recursos usados como moeda de troca em negociações políticas, com pouca transparência.

Os congressistas até poderiam usar as emendas de relator para contemplar as ações que sofreram cortes, mas o histórico recente dessas emendas mostra certa preferência pela aquisição de tratores, equipamentos, financiamento de obras e atendimentos de saúde em seus redutos eleitorais.

A situação do Orçamento de 2023 despertou críticas de especialistas e tem sido explorada por adversários de Bolsonaro na campanha eleitoral.

Economistas ligados à campanha do PT falam em “abismo social” ou “morte súbita” de programas na virada do ano. Integrantes do governo tentam rebater os ataques com a promessa de reformulação do Orçamento após as eleições e afirmam que a versão atual é “uma ficção”.

A resolução do impasse nos programas sociais vai exigir do presidente eleito e do Congresso uma negociação ágil para flexibilizar o teto de gastos e redesenhar o Orçamento.

É disso que depende, por exemplo, o funcionamento das unidades do Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), que atuam na gestão do Cadastro Único de benefícios sociais.

Trata-se de uma rede com ampla capilaridade: segundo o Censo Suas (Sistema Único de Assistência Social), o Brasil tinha 8,4 mil centros espalhados em 99% dos municípios brasileiros no ano de 2020.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, os recursos para a manutenção dessa rede, que é a porta de entrada para benefícios sociais como o Auxílio Brasil, tiveram um corte de 95% das verbas federais para 2023.

O presidente do Congemas (Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social), Elias Oliveira, afirma que as ações de assistência são financiadas em conjunto por União, estados e municípios.

Como os repasses federais têm caído ano a ano, isso obriga as prefeituras a investir valores maiores ou reduzir a atuação -prejudicando visitas domiciliares ou ações de acolhimento a jovens e mulheres em situação vulnerável.

“Não adianta essa mãe, essa família receber R$ 600 [do Auxílio Brasil] se não tem retaguarda, [não puder] mandar o filho para um serviço de convivência e fortalecimento de vínculos, se eu não puder oferecer a ela um curso de qualificação”, diz Oliveira.

“A ausência de recurso quebra toda essa rede. Os R$ 600 até permitem que ela compre o alimento, ou parte dele pelo menos, mas ela não tem a rede de proteção que é complementar.”

Em 2015, segundo o Congemas, a verba federal para auxiliar no financiamento dos Cras/Creas era de R$ 3,4 bilhões, em valores da época. Em 2022, a cifra caiu a R$ 1,1 bilhão. Para 2023, a reserva inicial é de meros R$ 48,3 milhões.

“Para a família muito pobre, essa rede é a primeira entrada que ela tem para que o Estado entenda quais são suas necessidades. Dali se consegue encaminhar outras ações de saúde, educação, creche, tudo que uma família muito vulnerável precise”, explica o economista Sergio Firpo, professor do Insper.

“Na hora em que se tira a previsão orçamentária, é como se estivesse dizendo para essas famílias muito pobres: ‘Se vira aí'”, acrescenta.

No programa habitacional Casa Verde e Amarela, um corte também de 95% levou o MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) a congelar 15 mil obras que seriam retomadas ainda este ano. Outras 125 mil serão suspensas a partir de janeiro caso não haja recomposição do Orçamento.

Alessandra Santos, representante do Movimento Sem Terra Leste 1, aguarda há oito anos o avanço do residencial Jerônimo Alves, batizado com o nome de seu pai, um dos que fundaram a organização há 35 anos.

O empreendimento faz parte de um projeto de três residenciais na zona leste de São Paulo, com capacidade para receber 700 famílias. A obra foi contratada em 2016, mas até hoje não saiu do papel por falta de dinheiro.

“Essa demora é um problema muito grande. Muitas famílias vivem de favor, na casa do pai, de tia, outras pagam aluguel, e com a pandemia muita gente acabou ficando desalojada, mesmo”, afirma Santos, que esperava ver o residencial contemplado no próximo ano.

“Temos famílias que tiveram que ocupar espaços na rua porque perderam a renda. Pessoas tiveram que ir embora de São Paulo, precisaram ir para outras cidades tentar a vida porque não conseguiram se manter aqui. Quase 100 famílias saíram do projeto por causa desses oito anos”, diz.

Na saúde, a situação também é delicada. Bolsonaro encaminhou a proposta de Orçamento com uma previsão de corte de 42% nas verbas discricionárias do Ministério da Saúde. Esse tipo de recurso é usado para comprar materiais, equipamentos e auxiliar na prestação de serviços à população.

O programa Farmácia Popular sofreu uma redução até maior, de 59%. Criado em 2004, o programa distribui medicamentos básicos gratuitamente ou com desconto de até 90% para hipertensão, diabetes, asma, entre outras doenças, por meio de farmácias privadas conveniadas.

A iniciativa é vista como central por gestores do SUS (Sistema Único de Saúde) para o controle de doenças prevalentes. Mas a verba caiu de R$ 2,48 bilhões neste ano para R$ 1 bilhão em 2023. Reduzir as entregas pode ampliar a demanda por atendimentos hospitalares e internações.

A proposta orçamentária também ameaça a manutenção do Mais Médicos e a consolidação do programa criado para sucedê-lo, o Médicos pelo Brasil. A verba reservada para estes programas de formação e descentralização de profissionais de saúde pode cair de R$ 2,96 bilhões neste ano para R$ 1,46 bilhão em 2023.

A professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Ligia Bahia, especialista em saúde coletiva, ressalta que o Mais Médicos hoje sustenta 18.240 vagas em 4.058 municípios de todo o país, além de 34 distritos sanitários especiais indígenas. “Com o corte de metade do orçamento, haverá redução de médicos para essas localidades mais distantes ou haverá complementação de recursos?”, questiona.

Bolsonaro ainda propôs reduzir 58% do orçamento do DataSUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) em 2023, o que pode ampliar os riscos de novos vazamentos de dados sensíveis da população.

Auxiliares do ministro Marcelo Queiroga dizem que as verbas reservadas à Saúde em 2023 são suficientes para garantir o funcionamento das principais ações por apenas quatro meses. Esses interlocutores também afirmam que foram pegos de surpresa pelo tamanho dos cortes e que, por isso, ainda não fizeram um diagnóstico preciso de quais ações podem ser interrompidas ou reduzidas no próximo ano.

A expectativa da pasta é que parte do Orçamento seja recomposta com verbas de emendas do relator. Essa saída, porém, exige negociação com o Congresso Nacional. Pressionado pela disputa eleitoral, Bolsonaro afirma que irá recompor o orçamento da Saúde, mas ainda não apontou uma solução concreta.

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