Brasília, DF
Dois soldados de Mianmar estão sob custódia do TPI (Tribunal Penal Internacional), em Haia, na Holanda, após terem confessado a participação em ações de limpeza étnica contra a minoria muçulmana rohingya, em 2017, segundo informações publicadas nesta terça (8) pelo jornal The New York Times, pela Canadian Broadcasting Corporation e pela ONG de direitos humanos Fortify Rights.
Segundo as publicações, os dois homens admitiram, em um vídeo gravado neste ano, ter participado do assassinato de dezenas de moradores de vilas, incluindo mulheres e crianças, no estado de Rakhine, na região oeste do país do sudeste asiático. Os homens também confessam estupros e afirmam ter enterrado as vítimas em valas comuns.
Os soldados listam os nomes e patentes de 19 militares que participaram das ações, além de seis chefes que, segundo eles, ordenaram ou contribuíram para os crimes.
Os dois homens faziam parte de agrupamentos diferentes à época, mas afirmam ter recebido ordens similares.
Segundo o New York Times, o soldado Myo Win Tun afirma que seu superior ordenou que atirasse “em tudo que visse e ouvisse” e que ele obedeceu, participando de um massacre do qual perdeu a conta da quantidade de mortos. No vídeo, enquanto era levado pela vila por onde passou, tentava lembrar do número: 60, 70, talvez mais, segundo o jornal.
“Atirávamos indiscriminadamente em todo mundo”, afirmou Win Tun na gravação. “Atirávamos nos homens muçulmanos na testa e os chutávamos no buraco”, disse, referindo-se à vala comum.
Win Tun também diz ter estuprado uma mulher.
Em um vilarejo próximo, o outro soldado, Zaw Naing Tun, fez um serviço parecido após ordenarem que matasse “tudo o que visse, crianças ou adultos”. Ex-monge budista, ele relata ter “destruído cerca de 20 vilarejos”.
Naing Tun afirma não ter cometido abusos sexuais porque sua patente era muito baixa. Em vez disso, conta ter ficado de sentinela enquanto outros membros de seu batalhão estupravam as vítimas.
O New York Times afirma que as afirmações dos dois soldados coincidem com relatos de diversas testemunhas, incluindo locais de valas comuns onde foram enterradas vítimas, datas de ataques e nomes de superiores.
É a primeira vez que membros do Exército birmanês confessam ter participado do que autoridades da ONU consideram um genocídio contra os rohingya.
A reportagem não teve acesso aos vídeos dos soldados.
O New York Times afirma não ter como confirmar de forma independente que os militares cometeram os crimes que descrevem. Nem o governo de Mianmar, nem as forças armadas do país responderam aos pedidos de comentários.
As publicações afirmam que, antes de ir para Haia, os dois soldados estavam sob custódia do Exército Arakan, um grupo insurgente que luta contra o Exército birmanês no estado de Rakhine. Segundo o porta-voz do grupo rebelde, Khine Thu Kha, os militares eram desertores e não foram detidos como prisioneiros de guerra. Ele não respondeu sobre o paradeiro dos soldados.
De acordo com Payam Akhavan, advogado canadense que representa Bangladesh em uma ação contra Mianmar no TPI, os dois homens apareceram em um posto de controle na fronteira pedindo a proteção do governo e confessaram os assassinatos em massa e os estupros de civis rohingya.
“Tudo o que posso dizer é que esses indivíduos não estão mais em Bangladesh”, disse Akhavan.
Segundo Matthew Smith, diretor-executivo da Fortify Rights, o momento é “monumental” para o povo rohingya e para o povo de Mianmar e sua busca por justiça.
“Esses homens podem ser os primeiros autores [dos crimes] de Mianmar a serem julgados pelo TPI e as primeiras testemunhas de dentro sob custódia do tribunal. Nós esperamos ação imediata”, disse.
Não está claro como e sob a autoridade de quem os soldados foram transportados para Haia.
Também é incerto o que pode acontecer com eles. Os soldados podem virar testemunhas e ser colocados sob proteção, assim como podem ser julgados pelos crimes. O TPI costuma processar autoridades e figuras de alto nível acusadas de genocídio e outros crimes contra a humanidade, e não soldados e militares de escalões mais baixos.
O gabinete do procurador do tribunal não comentou o caso. De acordo com o New York Times, duas pessoas familiarizadas com as investigações afirmaram que os soldados já foram até interrogados por autoridades do TPI nas últimas semanas.
À agência Reuters, o porta-voz do TPI, Fadi el Abdallah, negou que os soldados estejam sob custódia do tribunal.
“Esses relatos não estão corretos. Não temos essas pessoas sob custódia”, afirmou.
Mianmar tem negado repetidamente as alegações de que um genocídio estaria em curso no país. Segundo o governo do país, as operações militares realizadas em 2017 miravam militantes que atacaram postos policiais de fronteira.
Naquele ano, mais de 700 mil muçulmanos da etnia rohingya fugiram para Bangladesh, em um dos mais rápidos deslocamentos de refugiados na história.
Os relatos dos fugitivos descrevem uma campanha militar das forças armadas de Mianmar e de milícias budistas que inclui assassinatos em massa com machetes e idosos decapitados, abusos sexuais de meninas e destruição generalizada de vilas com lança-chamas.
Os Médicos sem Fronteiras estimam que ao menos 6.700 rohingyas, incluindo 730 crianças, foram mortos violentamente entre o final de agosto e setembro de 2017. A ONU estima que aproximadamente 200 assentamentos rohingya foram completamente aniquilados entre 2017 e 2019.
Cerca de 600 mil rohingyas seguem em Mianmar.
O TPI está investigando os crimes contra a humanidade e a deportação forçada de rohingyas para Bangladesh, além de perseguição e outros atos desumanos.
Os testemunhos também podem reforçar uma outra ação que também corre em outro tribunal de Haia. Mianmar está enfrentando acusações de genocídio na CIJ (Corte Internacional de Justiça).
Diferentemente do TPI, a CIJ não julga indivíduos nem ouve testemunhas. Embora emita decisões que são obrigatórias segundo o direito internacional, a CIJ não conta com um mecanismo para garantir que seus julgamentos sejam cumpridos.
No início deste ano, o órgão ordenou que Mianmar tomasse “medidas urgentes” para proteger os muçulmanos rohingyas de perseguição e atrocidades e que preservasse evidências de crimes contra eles.
A decisão é fruto de uma ação judicial iniciada pela Gâmbia, de maioria muçulmana, em nome dos 57 Estados membros da Organização da Cooperação Islâmica. O país argumenta que Mianmar violou a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, um tratado do direito internacional aprovado em 1948.
Foi a primeira vez que as denúncias de perseguição contra essa minoria chegam ao tribunal. Além da ordem de proteção, a decisão trouxe um reconhecimento, ainda que tácito, de que os rohingyas compõem um grupo étnico.
A Convenção sobre Genocídio, da qual o Brasil também é parte, prevê que suas regras somente são aplicáveis no caso de atos praticados contra “grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
O Estado de Mianmar não vê os rohingya como uma minoria distinta, e autoridades costumam se referir a eles como “imigrantes de Bangladesh”, embora haja vastas provas que atestam a presença do grupo na região há centenas de anos.
“Isso é algo pelo qual lutamos por muito tempo: sermos reconhecidos como humanos assim como todos os outros”, disse, à época da decisão, Yasmin Ullah, uma rohingya que mora no Canadá.
A líder de Mianmar, Aung San Suu Kyi, se recusa a chamá-los de rohingya, usando termos como “muçulmanos” ou “habitantes de Rakhine”, o estado no oeste do país onde a minoria se concentra.
Os rohingyas não têm direito à cidadania birmanesa. Como apátridas, eles não têm acesso a serviços básicos, como educação e saúde, e são proibidos de votar.
Pouco antes da apresentação da decisão da Corte, o jornal Financial Times publicou um artigo de Suu Kyi, no qual ela diz que podem ter sido cometidos crimes de guerra contra os rohingyas, mas que os refugiados exageram os abusos que teriam sofrido.
Na primeira audiência do caso, no dia 10 de dezembro, ela negou qualquer “tentativa de genocídio”.
Suu Kyi, que já venceu o Nobel da Paz em 1991 por ser considerada um ícone da democracia, admitiu aos juízes que o Exército pode ter feito um “uso desproporcional da força”, mas afirmou que isto não é prova de que tentava aniquilar esta minoria.
“Certamente, nas circunstâncias, a tentativa de genocídio não pode ser a única hipótese”, completou, na audiência na qual defendeu os interesses de Mianmar.
“Lamentavelmente, Gâmbia apresentou à Corte uma fotografia incompleta e enganosa da situação no estado de Rakhine”, disse ela na ocasião.
A CIJ estabeleceu o delito de genocídio em apenas uma ocasião: o massacre de 8.000 homens e crianças muçulmanas em 1995 na localidade de Srebrenica, na Bósnia.
As informações são da FolhaPress