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Putin pode até perder ao fim, mas já venceu o Ocidente na guerra da Ucrânia

Putin emergiu como uma espécie de salvador da pátria e, para o russo comum até aqui, entregou um país melhor

FolhaPress

24/02/2022 18h12

Foto: Reprodução

Igor Gielow

Independentemente do resultado final de sua audaciosa invasão da Ucrânia, Vladimir Putin já venceu o Ocidente nesta crise aguda, não vista em terras europeias desde que Adolf Hitler enviou suas últimas reservas atravessarem a floresta da Ardenas no inverno de 1944 para tentarem jogar os Aliados ao mar.

Diferentemente do ditador nazista, contudo, o presidente russo não parece estar na vazante terminal de seu poder, ainda que talvez não viva o zênite. Ao contrário, nesta prolongada contenda com o Ocidente, Estados Unidos à frente, deu as cartas desde o começo.

É uma história conhecida, que vai das humilhações sofridas pela Rússia na caótica década do pós-Guerra Fria às salvas de mísseis de cruzeiro da madrugada deste 24 de fevereiro. Putin emergiu como uma espécie de salvador da pátria e, para o russo comum até aqui, entregou um país melhor.

No caminho, contudo, ossificou o sistema político em torno de si. Em 2020, cedeu à tentação da perpetuação institucional, abrindo o caminho para ficar na cadeira até os 83 anos, em 2036.

Agora, apresenta à Rússia a perspectiva de muitos anos de ostracismo político-econômico -se não coisa pior.

Os motivos de Putin são conhecidos e obedecem a uma lógica, que é retomar o controle político sobre a antiga periferia soviética para evitar a gula do Ocidente e suas estruturas associadas, a Otan e a União Europeia.

Ninguém pode dizer que o caminho era improvável: em 2008, ele atacou a Geórgia em uma mini-guerra que lembra mais a atual do que o conflito de 2014 na mesma Ucrânia, quando anexou a Crimeia de disparou a guerra civil que está no centro da crise atual.

Ainda assim, por todo seu histórico de jogador tático, limitado ao próximo movimento, em oposição a uma sofisticação estratégica de horizonte estendido, Putin surpreendeu a todos os observadores fora do círculo do alarmismo do complexo ocidental mídia-serviços de inteligência-governos.

Politicamente, Putin provou seu ponto de forma sombria. O mundo do pós-guerra, e aí falamos do conflito encerrado em 1945, está morto. Os espasmos da hegemonia americana do pós-Guerra Fria, que mantinham a estrutura anterior viva por aparelhos, já inexistem.

Não deixa de carregar simbolismo o fato de que a guerra começou enquanto senhores vetustos se digladiavam na mesma Organização das Nações Unidas que tanto Putin quanto o grande sujeito oculto da análise geopolítica do momento, Xi Jinping, defendem como grande palco de um multilateralismo necessário e respeitador das particularidades políticas de cada país.

Só que a Ucrânia, como o russo deixou claro de 2020 para cá, não entra na categoria de Estado. Na visão putinista de mundo, Kiev é um esbirro bolchevique do imperialismo russo, e deve retornar à categoria de “área histórica”.

Assim, bombardeie-se, mesmo que isso pareça ilógico por alienar a população que deveria estar tentando conquistar. Mas o jogo de Putin é sobre a flacidez da musculatura do mundo liberal-democrático, e as implicações disso são assustadoras mesmo para brasileiros na periferia.

O presidente diz, com sua ação, que com força bruta pode impor sua vontade. Os adversários, afinal de contas, só conseguem prometer sanções cada vez mais incapacitantes -que até agora não mataram a economia russa e, dependendo da dose aplicada, podem vitimar também seus proponentes.

Se o mundo já era um lugar mais perigoso quando Putin impôs sua lógica à pequena Geórgia, hoje o “novo normal” anunciado pelo chefe da Otan tem a cara da guerra na Europa.

Historicamente, regimes democráticos são mais adaptáveis e, por falhos, sujeitos a correções de rumo. Encarnavam aquilo que Churchill falava de a democracia ser a pior forma de governo, à exceção das outras.

Agora, assim como nos anos 1930, seu momento de crise é atacado com força por desafiantes iliberais. Há diferenças óbvias com aquela realidade, mas o cheiro de repetição é incômodo, e o cupim está na casa, como Donald Trump já provara.

Pior para o Ocidente que Joe Biden seja o homem do outro lado -ou Trump, para ficar no duopólio. Ambos não têm a energia para estabelecer um canal para lidar com esse novo normal, assim como Barack Obama errou ao permitir Putin ganhar musculatura ao salvar a ditadura síria na guerra civil.

Evidentemente, não se trata de sugerir que a Otan deva entrar na guerra, por riscos apocalípticos evidentes e o potencial apetite de Putin de também querer se provar crível nesse campo. A essa altura, melhor não duvidar, e esta é outra vitória dele.

Mas o caminho que misturou desprezo aos russos e falta de visão estratégica levou o Ocidente ao impasse atual, com suas instituições repetindo como autômatos os mesmos discursos. Falto diálogo de lado a lado, e aí o russo poderá sempre dizer que alerta sobre isso desde o famoso discurso de Munique em 2007.

É tarde. Putin pode fracassar militarmente, ver sua própria população se mobilizar contra si, acabar engasgado pelas sanções. Ou vencer e ainda achar uma linha de salvação na China.

Seja como for, o resultado está aí: uma demonstração de poderio militar, realpolitik dura e completo desassombro na hora de justificar motivações com mistificações e verdades na mesma medida. O lobo, após tanto ter seu nome gritado, mordeu.

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