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Crise no Afeganistão eleva risco de terrorismo na Europa, dizem analistas

A recriação de uma base da Al Qaeda no Afeganistão para atentados terroristas no Ocidente também é vista como pouco provável no curto prazo

Redação Jornal de Brasília

08/09/2021 18h19

Taliban fighters patrol a street in Kabul on August 29, 2021, as suicide bomb threats hung over the final phase of the US military’s airlift operation from Kabul, with President Joe Biden warning another attack was highly likely before the evacuations end. (Photo by Aamir QURESHI / AFP)

Ana Estela de Sousa Pinto
FolhaPress

A tomada de poder pelo grupo fundamentalista islâmico Talibã no Afeganistão aumenta o risco de terrorismo na Europa, mas as ações devem ser mais pontuais que as das décadas passadas, afirmam especialistas em atividades extremistas e na prevenção de atentados.

A possibilidade de que grandes operações sejam preparadas no país da Ásia Central e realizadas na Europa “parece estar excluída”, principalmente porque as agências antiterrorismo se fortaleceram muito após os atentados do 11 de Setembro, diz o ex-agente de inteligência francês Claude Moniquet, que dirige o Centro Europeu de Inteligência Estratégica e Segurança.

A recriação de uma base de retaguarda da Al Qaeda no Afeganistão para atentados terroristas no Ocidente também é vista como pouco provável no curto prazo pelo islamologista Alain Grignard, professor de ciência política e criminologia da Universidade de Liège, na Bélgica.

Segundo o professor, o Talibã fará tudo para evitar que o Afeganistão seja visto como território livre para terroristas. “Foi justamente devido à Al Qaeda que o emirado islâmico construído pelo Talibã em 1996 foi destruído”, afirma Grignard, que atuou na divisão antiterrorismo da Polícia Judiciária Federal belga e integra o Centro de Estudos de Terrorismo e Radicalização da Universidade de Liège.

O islamologista diz que o projeto atual do Talibã, assim como o de 25 anos atrás, é “essencialmente nacionalista –de construir um Estado, segundo eles, ‘islamicamente puro'”. Assim, sem uma liderança com o dinheiro e o carisma que tinha Osama bin Laden, a Al Qaeda não deverá conseguir se impor.

Também o Estado Islâmico não deve se tornar uma ameaça maior para os países europeus, de acordo com Grignard, porque é inimigo do Talibã e da Al Qaeda e “estará muito ocupado lutando contra esta última para conseguir montar operações na Europa”. Se não terá impacto direto, o sucesso do Talibã em Cabul pode incentivar ataques pontuais, como esfaqueamentos e atropelamentos, afirma o professor, e, de acordo com Moniquet, “certamente dará um novo ímpeto ao movimento jihadista global”.

Segundo ele, foi o que ocorreu em 1989, após a vitória dos mujahidin (combatentes islâmicos) contra o Exército soviético. “Bin Laden disse: ‘Derrotamos a segunda potência militar do mundo, agora vamos atrás da primeira’. E isso foi feito em 11 de setembro de 2001”.

O fato de que o governo afegão, apoiado por EUA e Otan durante 20 anos, desmoronou em poucas semanas quase sem luta deve encorajar islâmicos radicais, afirma o analista. “Direta ou indiretamente, em Cabul a jihad global encontrou uma segunda juventude. Pode não demorar muito para que paguemos o preço”, diz Moniquet, autor de “Daech – La Main du Diable” (EI, a mão do diabo, inédito no Brasil).

“O islamismo é um fenômeno global, e o advento do regime talibã no Afeganistão galvaniza islâmicos em todo o mundo”, concorda a educadora belgo-marroquina Fadila Maaroufi, diretora do Observatório dos Fundamentalismos, com sede em Bruxelas. Ela cita como exemplo comemorações em rede social quando o Talibã tomou posse do palácio presidencial afegão, feitas por fundadores da Barakacity, entidade dissolvida em 2020 pelo governo francês após o assassinato do professor de história Samuel Paty.

Considerada salafista (que segue um islamismo ultraconservador e internacionalista), a Barakacity tem muitos apoiadores na França e na Bélgica, de onde saíram vários dos terroristas responsáveis por atentados em 2015 e 2016. “Vários grupos jihadistas em várias partes do mundo celebraram os recentes acontecimentos no Afeganistão”, afirma Annelis Pauwels, pesquisadora de contraterrorismo e crimes transnacionais, com foco na União Europeia e no Oriente Médio.

Para ela, que atua no Vlaams Vredesinstituut (Instituto para a Paz, centro independente de pesquisa do Parlamento Flamengo), a ascensão do Talibã pode ser usada como propaganda, para fortalecer nos jihadistas a convicção de que o terrorismo leva à vitória, mesmo contra uma potência global como os EUA.

O valor simbólico da retomada de Cabul “antes mesmo do aniversário do 11 de Setembro” também foi ressaltado por Charles Lister, diretor dos programas Síria e Combate ao Terrorismo e Extremismo no Instituto do Oriente Médio, baseado em Washington. “É impossível subestimar o quão significativo isso será para o movimento jihadista em todo o mundo –um efeito que será colhido por anos, se não décadas”, afirmou em análise para o instituto, dias antes da queda do governo no Afeganistão.

Além das cenas afegãs, a atenção sobre os jihadistas será reavivada pelo julgamento dos acusados pelos ataques que mataram 130 pessoas em Paris em 2015, iniciado nesta quarta (8), diz Grignard. “Alguns serão estimulados a ouvir continuamente na mídia sobre um islã radical ao qual aderem.”

Essa visibilidade pode estimular apoiadores mais ou menos próximos da causa a cometer ataques improvisados, como os que ocorreram no ano passado, durante o julgamento do atentado contra os jornalistas da publicação satírica Charlie Hebdo.

Ameaças de longo prazo

Para Maaroufi, a crise no Afeganistão deveria mostrar a líderes ocidentais que é ingenuidade acreditar em um Talibã “mais moderno e inclusivo”. “Fundamentalistas querem impor suas visões de mundo pela força e pela coerção”, diz a educadora, que trabalha na prevenção à radicalização islâmica em Bruxelas.

Moniquet também vê riscos na estratégia atual do Talibã de se mostrar menos radical, para obter reconhecimento e garantir a continuidade do regime. Segundo o especialista, para convencer os líderes ocidentais, terão que fazer concessões em relação a direitos das mulheres e, em menor medida, liberdade de expressão, o que deve desagradar membros mais radicais –”e são muitos”– e dividir o movimento.

“Se grandes partes do país escapassem de seu controle, grupos como a Al Qaeda ou EI-Khorasan [braço afegão do EI] poderiam florescer e planejar ações, pelo menos regionais, que se materializariam em ataques em países vizinhos ou contra interesses ocidentais nesses Estados”, afirma Moniquet. A transformação do Afeganistão em local seguro para grupos terroristas, como antes dos ataques de 11 de setembro de 2001, seria um risco no longo prazo, afirma Pauwels, do Instituto para a Paz.

“Vários combatentes estrangeiros ocidentais que lutaram com o Estado Islâmico na Síria e no Iraque ainda não voltaram para casa e podem continuar lutando ou recebendo treinamento militar em outros locais, incluindo o Afeganistão”, diz ela, o que pode representar uma ameaça direta à Europa se esses cidadãos decidirem voltar aos países de origem para promover atentados.

Por fim, “outro problema se agiganta”, segundo Maaroufi: a possibilidade de que extremistas islâmicos se instalem na Europa durante os esforços para acolher refugiados políticos. “O direito de asilo é fundamental, mas será preciso exercer vigilância e prudência”, afirma ela. Essa é uma preocupação já manifestada pela comissária responsável por imigração no bloco europeu, Ylva Johansson.

Em 2013, a Comissão Europeia tentou criar um sistema de registro obrigatório para todos os ingressantes no bloco, a partir do Eurodac, um amplo banco de dados com impressões digitais, mas a proposta foi atacada por entidades de direitos humanos. Moniquet é mais um a não descartar a possibilidade de que “elementos terroristas infiltrados sob a cobertura de pessoas retiradas ou refugiados” realizem ações em Paris, Londres ou Nova York, ainda que em menor escala.

Relembre atentados terroristas na Europa desde 2001

Madri 11.mar.04 – 191 mortos
Terroristas da Al Qaeda explodiram 11 mochilas com bombas em quatro trens, na mais grave ação extremista na Europa desde o atentado em Lockerbie, em 1988. Mais de 1.700 ficaram feridos.
Londres 7.jul.05 – 52 mortos
Ataques da Al Qaeda contra três estações de metrô e um ônibus londrinos mataram 52 pessoas e feriram outras 700
Bruxelas 24.mai.14 – 4 mortos
Mehdi Nemmouche, simpatizante do Estado Islâmico que havia combatido na Síria, abriu fogo dentro do Museu Judaico da Bélgica, matando quatro pessoas
Paris – 7.jan.15 – 12 mortos
Dois integrantes da Al Qaeda mataram 12 pessoas e feriram outras 11 na Redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo. O grupo terrorista assumiu a autoria
Paris – 9.jan.15 – 5 mortos
Um jihadista fez reféns em um supermercado kosher em Paris, deixando quatro mortos; na fuga, matou uma policial em tiroteio
Paris 13.nov.15 – 130 mortos
Ataques simultâneos com homens-bomba no Stade de France, fuziladas em restaurantes e na casa de shows Bataclán. Autores eram ligados ao Estado Islâmico (EI)
Bruxelas 22.mar.16 – 31 mortos
Explosões no aeroporto internacional e em uma estação de trem próxima à sede da UE foram reivindicadas pelo EI. Mais de 300 ficaram feridos
Munique 10.mai.16 – 1 morto
Um homem esfaqueou 5 pessoas em uma estação de trem enquanto gritava “Alá é grande” em árabe. A polícia afirmou que o homem não possuía ligações com redes terroristas
Munique 22.jul.16 – 9 mortos
Atirador abriu fogo dentro e nas imediações de um shopping em Munique. Após troca de tiros com a polícia, o autor teria se suicidado. Vinte e uma pessoas ficaram feridas. As autoridades não encontraram indícios de que o homem estaria ligado a redes terroristas
Nice 14.jul.16 – 84 mortos
Estado Islâmico assumiu um ataque em que caminhão invadiu área de pedestres na orla, local onde grande público comemorava a festa da Bastilha, tradicional feriado nacional francês
Saint-Etienne-du-Rouvray 26.jul.16 – 1 morto
Dois agressores mataram um padre com uma lâmina e feriram gravemente outro refém durante uma missa. Eles declaram lealdade ao EI
Berlim 19.dez.16 – 12 mortos
Caminhão atingiu uma feira de artigos de Natal e atropelou pedestres. Um dos suspeitos foi preso, e o outro, morto pela polícia; EI alegou autoria
Londres 22.mar.17 – 3 mortos
Um ano após os atentados de Bruxelas, um carro atropelou duas pessoas na ponte de Westminster. O terrorista do EI também matou um policial
Estocolmo 7.abr.17 – 4 mortos
Um caminhão roubado invadiu uma rua de pedestres atropelando várias pessoas até bater em uma loja. O autor era simpatizante do EI
Paris 20.abr.17 – 2 mortos
Três dias antes das eleições presidenciais, um atirador do EI trocou tiros com a polícia na famosa avenida Champs Elysées
Manchester 22.mai.17 – 22 mortos
Duas bombas atingiram o público jovem que saía do show da artista pop Ariana Grande. O EI reivindicou o atentado, que feriu 59
Londres 3.jun.17 – 7 mortos
Van atropelou cerca de 20 pessoas sobre a ponte de Londres; homens com facas atacaram pessoas em restaurante próximo. Autores eram ligados ao EI
Londres 18.jun.17 – 1 morto
Fiéis foram atropelados na saída de uma mesquita; imã protegeu o motorista da multidão furiosa até a chegada da polícia. Não foram encontradas ligações com grupos terroristas
Barcelona 17.ago.17 – 13 mortos
Por volta das 17h (horário local, 12h em Brasília), uma van atropelou dezenas de pessoas nas Ramblas, zona turística da cidade, matando 13 e deixando cerca de cem feridos
Trèbes (França) 23.mar.18 – 3 mortos
A polícia francesa matou um homem de 26 anos que fez reféns e deixou 3 mortos e 16 feridos em um supermercado no sul do país. Ele declarou pertencer ao EI, que reivindicou a autoria
Paris – 12.mai.18 – 1 morto
Uma pessoa morreu esfaqueada e outras quatro ficaram feridas durante um ataque no distrito do Opera, no centro de Paris; o agressor foi morto pela polícia, e o atentado, reivindicado pelo Estado Islâmico
Lyon 24.mai.19 – sem mortos
O estouro de uma mala abandonada em frente a uma padaria deixou 13 feridos. Um estudante argelino de 24 anos admitiu a ação e disse ser simpatizante do EI
Londres 29.nov.19 – 2 mortos
Um homem de 28 anos que carregava junto ao corpo explosivos falsos matou duas pessoas a facadas e feriu ao menos três perto da London Bridge; ele cumprira pena por atos de terrorismo, estava em liberdade condicional e, segundo a polícia, agiu sozinho
Londres 2.fev.20 – sem mortos
Sudesh Amman, 20, esfaqueou duas pessoas antes de ser morto pela polícia no sul de Londres. Ele havia sido condenado por posse e distribuição de material terrorista e saíra da prisão havia uma semana
Paris – 25.set.20 – sem mortos
Dois jornalistas foram esfaqueados enquanto faziam uma pausa no trabalho, perto do antigo escritório do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, alvo de um ataque terrorista em 2015. Dois suspeitos, um paquistanês e um argelino, foram detidos pela unidade antiterrorismo
Paris – 16.out.20 – 1 morto
O professor de história Samuel Paty foi decapitado após mostrar charges de Maomé em aula sobre liberdade de expressão. O agressor, de 18 anos, foi morto pela polícia, que trata o caso como terrorismo
Nice (França) 29.out.20 – 3 mortos
Com uma faca, um tunisiano de 21 anos recém-chegado à Europa entrou pela manhã na basílica de Notre-Dame de Nice e matou três pessoas, entre as quais a brasileira Simone Barreto Silva, de 44 anos
Viena 2.nov.20 – 4 mortos
Um simpatizante de 20 anos do EI e de origem macedônia que cresceu na Áustria saiu atirando no centro de Viena com um fuzil automático e deixou 4 mortos e 22 feridos. O governo afirmou que ele agiu sozinho

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