ANDRÉ FONTENELLE
PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS)
Ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 2022 com a ONG que preside, a advogada ucraniana Oleksandra Matviichuk, 41, embarca nesta quinta (14) para o Brasil, onde, segundo sua assessoria, está prevista sua participação em eventos paralelos ao G-20. Ela disse à Folha de S.Paulo, durante o Fórum de Paris pela Paz, que pretende mostrar aos brasileiros o que considera como atrocidades cometidas pelo Exército russo em seu país.
A ONG fundada por Matviichuk, o Centro pelas Liberdades Civis, afirma ter documentado 80 mil crimes de guerra. Uma das denúncias é a suposta deportação forçada de 20 mil crianças ucranianas, adotadas por famílias russas. “Planejo contar essas histórias para as pessoas no Brasil.” Ela pleiteia a criação de um tribunal internacional para julgar o presidente Vladimir Putin e outras autoridades russas.
PERGUNTA – O presidente Lula tem afirmado que a guerra é culpa de ambos os lados, o que tem lhe rendido críticas. A sra. está indo ao Brasil no período em que o país receberá a cúpula do G20. O que vai dizer ao público brasileiro?
OLEKSANDRA MATVIICHUK – Não é muito fácil falar sobre política quando não se é político. Eu vou falar sobre pessoas. Vou falar sobre a dimensão humana desta guerra. Como esta guerra é para os civis.
Planejo levantar a questão das dezenas de milhares de crianças ucranianas deportadas ilegalmente para a Rússia, onde elas são levadas à força para campos de reeducação e informadas de que não são crianças ucranianas, e sim russas, que os pais as rejeitaram e agora elas serão adotadas por famílias russas, que vão criá-las como russas.
Planejo falar desses bombardeios e ataques propositais a prédios residenciais, escolas, igrejas, museus e hospitais. Provavelmente as pessoas no Brasil não sabem que leva apenas 42 segundos para os foguetes russos atingirem uma escola em Kharkiv. Quando você tem 42 segundos e seus filhos na escola, é muito menos tempo para seus filhos se esconderem, e você tem um entendimento claro de que provavelmente em 42 segundos seus filhos morrerão. Então, planejo trazer a dimensão humana porque sou uma advogada de direitos humanos.
P – Celso Amorim, assessor diplomático de Lula, disse neste fórum em Paris que talvez com Trump haja um vislumbre de esperança. A sra. está otimista ou pessimista em relação à sua causa?
OM – A esperança é importante, mas não é uma estratégia. Temos que desenvolver uma estratégia conjunta. Quando um país com forte potência militar e armas nucleares rompe a ordem internacional, dita suas regras para toda a comunidade internacional e até viola ordens reconhecidas internacionalmente, não é apenas um problema ucraniano. Se Putin tiver êxito, isso encorajará outros líderes autoritários em diferentes partes do globo a fazer o mesmo e podemos nos encontrar em um mundo que será perigoso para todos, sem exceção.
P – Fala-se na criação de uma zona desmilitarizada, que seria uma solução para a paz. A sra. acredita nesta proposta?
OM – Temos que falar sobre garantias de segurança reais, sobre ferramentas reais para impedir que a Rússia vá mais longe. Tudo o mais é apenas discussão teórica ou pensamento positivo.
P – A sra. acha que a União Europeia deveria ter um papel militar nesta guerra?
OM – Não apenas militar. Sou uma advogada de direitos humanos e provavelmente isso soa muito ingênuo, mas temos que falar sobre moral, temos que falar sobre humanidade, temos que falar sobre justiça. Isso é algo que também temos que trazer à mesa. Sim, a Ucrânia precisa de soldados e patriotas para proteger seu espaço aéreo e defender cidades e civis, mas também precisamos de um tribunal especial, porque todas essas atrocidades que documentamos são apenas resultado da decisão de Putin de começar esta guerra de agressão. Ele cometeu crimes contra a paz. Ele tem que ser responsabilizado.
P – Como sua organização documenta os supostos crimes de guerra russos?
OM – Quando a guerra em grande escala começou, unimos nossos esforços com dezenas de organizações regionais e construímos uma rede nacional de documentadores locais. Cobrimos o país inteiro, incluindo os territórios ocupados. E trabalhando juntos nesses dois anos e meio de guerra, nós documentamos em conjunto mais de 80 mil episódios de crimes de guerra. Sejamos claros, não são apenas violações de Genebra e suas convenções. Nós documentamos a dor humana. São 80 mil histórias humanas. E eu planejo contar as histórias para as pessoas no Brasil.
P – A Folha de S.Paulo está mostrando em uma série de reportagens como a Rússia está aumentando sua presença nas regiões ocupadas.
OM – A Rússia é um império. Um império tem um centro, mas não tem fronteiras. O império sempre tenta se expandir. Putin não precisa apenas de mais terras no Donbass [região do leste da Ucrânia]. Ele quer restaurar o império russo. Então temos que entender o objetivo da Rússia muito claramente. Não se trata apenas de mais territórios orientais da Ucrânia. Ele pensa em como enraizar isso na história.
P – Então a sra. acha que essa situação pode ser revertida?
OM – Eu acho que o mundo anterior entrou em colapso e não podemos retornar ao status quo. Temos que trabalhar duro para construir um novo sistema coletivo de paz e segurança na região e no mundo.
P – A sra. defende a entrada da Ucrânia na Otan?
OM – Acho que a Ucrânia merece se juntar à Otan. Porque a Ucrânia não será apenas uma beneficiária, mas uma forte contribuinte para a segurança na aliança. E não são apenas palavras, nós provamos isso no campo de batalha.