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Brasil

Uma conversa inacabada

Mas a chuva parou depois de minutos e a noite se transformou em uma daquelas noites mágicas: estávamos todos felizes por estarmos juntos

Redação Jornal de Brasília

07/07/2022 14h01

Foto: AFP

A última vez que vi Dom foi no dia 30 de abril, depois de um show de Gilberto Gil. Sem ter combinado antes, havíamos comprado separadamente os ingressos para o show em Salvador, onde Dom morava.

No dia seguinte, saímos Dom, sua esposa Alê, a minha, Raika, e eu. Chovia quando chegamos ao restaurante, ao ar livre, com a maioria das mesas encharcadas. Minha esposa e eu havíamos escolhido o local, e pensei na hora: “Ah, a noite não começou bem”. Mas a chuva parou depois de poucos minutos e a noite se transformou em uma daquelas noites mágicas: estávamos todos felizes por estarmos juntos, nos divertindo e rindo o tempo todo.

Nem sei quanto tempo ficamos… até o bar fechar. Foi muito bom colocar o papo em dia, pois a gente se via com menos frequência desde que eles se mudaram do Rio de Janeiro para Salvador, para ficar perto da família da Alê.

Passamos muito tempo falando sobre nossos últimos projetos. Dom estava trabalhando em um livro sobre a Amazônia e eu estava planejando uma nova viagem à região. Como de costume, tínhamos muitos pontos em comum. Ele se preparava para viajar ao estado do Acre para visitar uma comunidade indígena, os últimos descendentes dos incas. E eu estava a caminho de filmar uma história sobre uma comunidade indígena Kayapó, que defende seu território contra os garimpeiros ilegais.

“Gostaria que você fosse comigo”, disse para ele. “Não posso desta vez, tenho o livro”, respondeu-me. “Mas está quase pronto”. Pensamos em fazer muitas outras reportagens juntos.

Conheci Dom em 2019, quando trabalhamos juntos em uma matéria para o The Guardian. Ele estava escrevendo sobre ‘lavagem de gado’: quando as autoridades embargam fazendas por destruir a floresta tropical, os fazendeiros contrabandeiam seu gado para o mercado, ao transferir os animais em estabelecimentos com registros limpos. É uma prática generalizada.

Viajamos para São Félix do Xingu, o coração da região pecuária brasileira, visitando fazendas autuadas para documentar que ainda estavam em operação. Eu tirei as fotos. Era uma história complicada, pois é uma região violenta e sem lei, e os fazendeiros geralmente não gostam de forasteiros bisbilhotando. De fato, cobrir crimes ambientais é perigoso em toda a Amazônia. E piorou com o presidente Jair Bolsonaro, cujo governo enfraqueceu as proteções ambientais.

Essa foi a primeira de muitas viagens que eu e Dom realizamos juntos à Amazônia. Nos tornamos amigos imediatamente. Compartilhamos uma paixão pela floresta tropical. Na época, ele morava no Rio e nos encontrávamos para beber em barzinhos. Sempre conhecia os lugares com a cerveja mais barata e a melhor comida.

Ele tratava todos com muito carinho e tinha um maravilhoso senso de humor. Lembro que uma vez ele me consolou porque eu tinha uma história que nenhuma mídia queria me comprar. “João”, disse, “algumas histórias são assim: somos os únicos que as amamos”.

O último trabalho que fizemos juntos, para o The Guardian, foi sobre garimpos ilegais que destroem a reserva indígena Yanomami, a maior do Brasil. Foi uma viagem incrível. Visitamos duas comunidades que haviam sido invadidas pelos garimpeiros e também fomos ao garimpo.

Dom queria entender a perspectiva dos garimpeiros, pois não os enxergava como vilões, mas como pessoas pobres tentando ganhar a vida. Estava sempre procurando entender como as pessoas podem viver da floresta sem destruí-la. Toda vez que fazia uma história sobre algo negativo, tentava encontrar um ângulo positivo para equilibrar. Acho isso inspirador.

A viagem que estava planejando quando me encontrei com Dom durou quatro semanas, muito mais do que eu pensava. Quando voltei, ele havia terminado sua própria viagem ao Acre e partido novamente, desta vez com indigenista Bruno Pereira, para o Vale do Javari, próximo à fronteira com o Peru e a Colômbia.

Dom admirava o trabalho do Bruno com os povos indígenas da região, que tem a maior concentração de povos isolados do planeta, ajudando-os a proteger suas terras da extração ilegal de madeira, garimpo e caça ilegal.

Eu nem sabia que Dom estava no Vale do Javari. Fiquei sabendo quando Alê me ligou na segunda-feira, 6 de junho. Estava em pânico. “João, preciso da sua ajuda”, disse. “Não sei onde Dom está. Ele já deveria estar de volta”.

“Não se preocupe”, disse. “Acabei de voltar de uma viagem de quatro semanas que deveria durar duas. Acontece na Amazônia”.

“Mas ele tinha um telefone via satélite”, disse. Então eu também comecei a me preocupar. Se ele tinha um telefone via satélite, deveria ter entrado em contato. Algo estava errado.

No dia seguinte, era notícia mundial. A AFP me ligou para perguntar se eu tinha fotos de Dom. Em nossas viagens juntos, sempre tirávamos fotos por diversão. Liguei para a Alê e perguntei se ela estava de acordo em publicar algumas. “Com certeza”, respondeu. “Quanto mais pessoas virem a história, melhor”. As imagens foram publicadas em todo o mundo. Sempre pensei nelas como fotos de família. De repente, estavam por toda parte.

Carl de Souza, chefe de fotografia da AFP no Brasil, me ligou no dia seguinte para me pedir para viajar ao Vale do Javari cobrir as buscas.

Sou freelancer e geralmente fico feliz em receber um convite como esse da AFP, pois é uma grande agência com alcance mundial. Mas desta vez senti tristeza, embora também sentisse a necessidade de estar ali.

Peguei um avião para sair do Rio e percorrer o mesmo caminho que Dom havia feito uma semana antes: voei para Manaus, depois para Tabatinga, depois de barco pelo rio Amazonas e finalmente de carro até Atalaia do Norte, a cidade de onde ele e Bruno partiram no dia 2 de junho.

Comecei a trabalhar de cara. Não era uma história fácil. O Vale do Javari é uma floresta densa, e trabalhávamos o dia todo, todos os dias, sujos e encharcados de suor, até altas horas da noite.

Uma noite eu acampei na floresta com os voluntários indígenas que lideravam o esforço de busca. Apesar de tudo, estava tentando manter a esperança por Dom, mas com muitos sentimentos aflorados. Chorei todos os dias, um choro em forma de oração.

Era difícil saber de onde viria a próxima notícia: nos sinuosos leitos marrons dos rios onde a busca estava ocorrendo; ou na cidade, onde os investigadores interrogavam os primeiros suspeitos, caçadores e pescadores supostamente em busca de vingança pelo trabalho de Bruno no combate a crimes ambientais em terras indígenas. Ironicamente, assim como com os garimpeiros, Dom também queria contar a história deles.

Depois veio a questão da Internet. Como em grande parte da região amazônica, em Atalaia, é via satélite. O gabinete do prefeito, que tem a melhor conexão, gentilmente compartilhou seu Wi-Fi com a mídia global que chegou à pequena e remota cidade.

Mas enviar fotos demorava horas e vídeos ainda mais. Houve momentos em que senti vontade de arrancar os cabelos ao ver como o indicador de “porcentagem de upload” se movia não para frente, mas para trás. Minha ansiedade não facilitava as coisas. Houve momentos em que pensei que teria um colapso.

Lentamente, as peças do quebra-cabeça começaram a emergir da rede de canais obscuros do vale. As autoridades, lideradas por uma habilidosa equipe de busca indígena, embora os funcionários se recusassem a admitir, encontraram primeiro a mochila de Dom, o cartão de saúde de Bruno e outros pertences; então o que parecia uma sepultura; depois seus corpos.

É o tipo de coisa que você nunca gostaria de fotografar. Mas, ao mesmo tempo, eu queria fazer o trabalho da melhor maneira possível. Estava empenhado em seguir a história até o fim. Fui um dos primeiros jornalistas a chegar e um dos últimos a sair, mais de duas semanas depois.

Minhas fotos foram publicadas no mundo inteiro. Tem sido difícil de processar. Sou grato pelo reconhecimento, mas gostaria que fosse por uma história diferente. Não queria que fosse assim. É como um chute no estômago.

Fico pensando naquela noite em Salvador: Dom e eu prestes a partir em nossas respectivas viagens à Amazônia. “Cuidem-se vocês dois”, disseram nossas esposas. “Nos vemos em breve”, dissemos eu e Dom enquanto nos abraçávamos para nos despedirmos.

Deveríamos nos encontrar novamente para compartilhar as experiências dessas viagens. Eu queria ouvir tudo sobre sua jornada para ver os descendentes dos incas. Adorava a história. Tenho certeza que ele voltou com histórias incríveis. E eu queria contar a ele tudo sobre minha jornada com os Kayapó, sobre minhas quatro semanas vivendo como caçador-coletor na floresta tropical, sobre as incríveis fotos de um bando de garimpeiros detidos por guerreiros indígenas. Tínhamos muito o que conversar.

O mais difícil é essa conversa inacabada.

Mas Dom gostaria que essa história tivesse um final positivo. Então prefiro terminar dizendo o seguinte: As comunidades indígenas e outros que desafiam todas as dificuldades para salvar a Amazônia diante de um governo hostil me dão uma grande esperança. Passarei o resto da minha vida contando essa história. Agora tenho outra grande razão para fazê-lo.

João Laet*
As informações são da AFP

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