Menu
Brasil

Moïse tinha o sonho de viajar para visitar o irmão na França

Desde que o jovem foi morto, há pouco mais de uma semana, viraram apenas 11

FolhaPress

02/02/2022 22h16

Foto: Reprodução

Júlia Barbon
São Paulo, SP

No fundo de um corredor estreito, o menino de 7 anos, coroado por tranças amarradas no topo da cabeça, assiste a vídeos no celular. Sorridente, responde: “Meu irmão estava brigando”, enquanto desliza a tela do TikTok até ver a cena de um homem negro sendo espancado.

O homem é Moïse Mugenyi Kabagambe, e o menino, o caçula de uma prole de 12 irmãos. Desde que o jovem foi morto, há pouco mais de uma semana, viraram apenas 11. Visitar um deles na França era um dos sonhos do congolês que teve a vida interrompida a pauladas.

Para isso, acompanhava atento grupos e páginas na internet que avisavam se o clima estava para praia. Sem ter terminado o ensino médio, era dali que tirava seu sustento havia cerca de cinco anos, vendendo caipirinhas e petiscos ao apelido de Angolano.

Bom de lábia e falando quatro línguas –português, francês, lingala e um pouco de inglês–, tinha vantagem nas areias, segundo a família. E gostava do que fazia. Estava animado por voltar a trabalhar depois de um tempo parado pela pandemia, vivendo de auxílio emergencial.

Não chegou a passar fome como os que vieram antes dele. Já dificuldade, “passou como todo mundo”, responde um tio. Aterrissou no Aeroporto de Guarulhos em 2011, aos 13 anos, junto de alguns dos irmãos, e logo estava no Rio de Janeiro, na casa de parentes e amigos até a mãe chegar, três anos depois.

Recentemente dormia com ela e dois irmãos, incluindo o caçula, no único quarto da casa em Madureira (zona norte). As roupas ainda esticam no varal, as camas estão desarrumadas, e as panelas, no fogão. Ali não tem essa de parentesco, todo mundo é irmão ou filho.

Na República Democrática do Congo (RDC) hoje ainda ficou uma boa parte da família, incluindo o pai, político que atualmente trabalha na diplomacia. A primeira vez que pisaria no Brasil seria para chorar a morte do filho, mas não deu tempo de concluir a burocracia.

Não viu a dança que embalou o enterro do filho no último domingo (30), que segundo os parentes não foi cerimônia, mas apenas “a expressão de dentro que estavam botando para fora”. Porque africano tem ritmo que é de dor, diz o tio.

O ritmo de alegria Moïse também tinha. Já era conhecido no samba d’Os Cria da Rua Alice, na zona norte carioca, e adorava curtir um baile funk. O churrasco também só começava quando ele chegava, por isso atrasou no fim do ano, quando se recusou a assar a carne.

Era mais brasileiro que muito brasileiro e já falava sem sotaque. Quase todos os amigos eram daqui, conhecidos no bairro, na praia ou durante os bicos como garçom em restaurantes, lanchonetes e quiosques. Nunca trabalhou de carteira assinada.

Outro dom eram os truques de mágica, um dos charmes do menino descrito como alegre, comunicativo, engraçado e prestativo. Certa vez se recusou a deixar a tia com Covid-19 e dificuldade de respirar em casa. “Não, tio, eu vou levar ela no hospital”, insistiu.

Sabia pedir perdão, diz o amigo Gabie Nzazi, 34, que ajudou a cuidar dos pequenos quando chegaram da África. A mãe concorda: “Ele pedia desculpa aqui em casa por qualquer coisa que fazia. Dizia ‘Mãe, desculpa'”, reproduz Lotsove Lolo Lavy Ivone, 43, sem conseguir conter o choro.

Agora a casa de Madureira está constantemente cheia. A sala quase não suporta as cerca de 15 pessoas, incluindo familiares, amigos, repórteres e funcionários do governo do Estado, que vieram na tentativa de entender o que aconteceu. Eles ainda não tiveram todas as respostas.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado