GÉSSICA BRANDINO E NICHOLAS PRETTO
FOLHAPRESS
Metade dos mais de 3,1 milhões de escravizados que desembarcaram no Brasil de 1574 a 1856 foi comprada em portos de Angola e da região da Costa da Mina, que corresponde ao território atual de Gana, Togo, Benin e Nigéria, na África.
No porto de Luanda, capital angolana, foram vendidas mais de um milhão de pessoas; nos portos da Costa da Mina, 569 mil. Outros 549 mil escravizados foram comprados nas cidades de Benguela e Cabinda, reforçando a posição de Angola no tráfico. A origem dessas pessoas e quem eram, porém, é algo que historiadores trabalham para decifrar.
A reportagem analisou dados de mais de 36,1 mil viagens disponibilizadas pelo The Trans-Atlantic Slave Trade Database, do site Slave Voyages, mantido por um consórcio de oito universidades, a maior parte dos Estados Unidos. Desse total, 9.700 viagens chegaram ao Brasil, com 3,168 milhões de escravizados. A estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) é um pouco maior, de cerca de 4 milhões.
“O Brasil foi o maior importador de escravos da África. Começou cedo, no século 16, um volume relativamente pequeno comparado com outras áreas do Atlântico, mas que cresceu durante os séculos 17 e 18 por causa da expansão da cultura açucareira ao longo da costa, principalmente no Nordeste e depois no Sudeste”, afirma Daniel Domingues da Silva, professor associado de história da Universidade Rice (em Houston, Texas, nos EUA) e responsável pelo site.
As primeiras viagens ao Brasil datam de 1574, ou seja, 60 anos após os primeiros registros de tráfico da África para outros países. Naquele ano, 48 escravizados chegaram ao país, menos de 2% dos traficados. O Brasil se consolidou como um país importante no mercado escravista nos séculos seguintes, com auge no século 19, quando 56% dos traficados tiveram o país como destino.
O pico de chegadas aconteceu em 1829, com mais de 71 mil desembarques motivados pela especulação da aprovação de leis para acabar com o comércio de africanos, diz Luiz Felipe Alencastro, historiador com amplo estudo sobre escravidão e professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
“Quando Eusébio de Queirós [ministro da Justiça do Império] avisou, os fazendeiros (inclusive o sogro dele que era traficante) que era para valer a lei a ser votada em 1850, houve uma especulação para trazer o máximo possível de africanos ao país.”
Muitas das pessoas comercializadas nesses portos, talvez a maioria, não eram dali ou das regiões vizinhas, mas de outras áreas. Segundo o historiador, havia quatro eixos do tráfico, a começar pelos golfos de Benin e Biafra, depois em Angola e no Congo, passando para Senegal e Gâmbia e, por fim, Moçambique.
“Não é possível tomar o lugar do porto como o local de origem porque essas zonas todas são ligadas a redes fluviais que se ligam a redes terrestres, então eles foram atraídos para essa região de embarque, onde chegavam os navios europeus”, diz.
Por muito tempo, não foram coletadas informações individualizadas sobre quem eram os escravizados, em parte porque muitos registros se perderam ou nem sequer foram feitos.
“A informação existe, mas é muito fragmentária e de difícil acesso”, afirma Silva, acrescentando que estão em arquivos, principalmente na Europa e em diferentes lugares da América. “Tem alguns arquivos africanos, mas não são muitos e tratam apenas de uma pequena fração do que foi o comércio de escravos.”
Séculos depois, a falta desses dados impacta a busca de brasileiros que tentam descobrir a ancestralidade. Leonardo SantAna, 39, gerente de operações legais da Latam, decidiu pesquisar sua origem após ajudar a esposa a levantar documentos para a obtenção da cidadania italiana.
Se para ela o processo foi simples, para ele só alcançou informações dos bisavós. Em 2021, então, decidiu fazer um teste de DNA, que mostrou que 76% da ancestralidade dele vem da África, sendo 35% da Costa da Mina, 24% do oeste da África, 9% do leste e 8% da região do Senegal e Gâmbia.
“É importante saber minhas origens porque é o que está por trás da minha socialidade, como eu sinto e vejo as coisas. Por outro lado, é revoltante, porque você relembra a história, de que os meus foram trazidos ao Brasil de forma tão cruel e em um processo tão duro”, diz.
Os territórios que hoje correspondem aos estados do Rio de Janeiro e da Bahia foram onde desembarcaram 78% dos escravizados que chegaram ao país, com mais de 1,2 milhão de pessoas em cada um deles, sendo a cidade do Rio o principal polo de desembarque. Enquanto para o Rio o fluxo vinha da região de Angola e do Gabão, para a Bahia predominavam as viagens a partir do golfo do Benin.
Além dos dois estados, Pernambuco e Maranhão também foram importantes polos de chegada de escravizados, onde desembarcaram respectivas 423 mil pessoas, a maioria vinda a partir de Angola, e 93 mil, a maior parte do Senegal e da Gâmbia.