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Brasil

Empresário descumpriu contrato e deixou Terra Indígena Yanomami sem transporte

A empresa contratada para o transporte aéreo de profissionais de saúde e de indígenas yanomamis durante o governo Jair Bolsonaro

FolhaPress

22/03/2023 19h52

Daniel Beltrá/Greenpeace/Divulgação

Vinicius Sassine

Manaus, AM

A empresa contratada para o transporte aéreo de profissionais de saúde e de indígenas yanomamis durante o governo Jair Bolsonaro (PL) descumpriu o contrato, no valor de R$ 7,4 milhões, e deixou de fornecer helicópteros para acesso à terra indígena por pelo menos 14 dias.


No período, houve mortes de crianças na região de Surucucu e fechamento de unidades básicas de saúde no território, em Roraima.


A interrupção dos serviços, os óbitos e o fechamento de postos de saúde se deram em dezembro de 2020, de acordo com um ofício do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, que comunicou aos sócios da empresa a aplicação de penalidade em razão do descumprimento do contrato. O ofício foi anexado a um processo judicial de dissolução da sociedade da firma.


Em 2021 e em 2022, a crise humanitária dos yanomamis se agravou, com explosão de casos de malária e de doenças associadas à fome, como desnutrição grave, diarreia aguda, pneumonia e infecções respiratórias. Somente no Hospital da Criança Santo Antônio, em Boa Vista, para onde são levados os pacientes em estado grave, 29 crianças yanomamis morreram em 2022.


Após a publicação da reportagem, nesta quarta-feira (22), a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) enviou requerimento ao Ministério da Saúde para que dê detalhes do contrato. A parlamentar é vice-presidente da comissão externa do Senado que acompanha a crise humanitária do povo yanomami.


“O caso se soma a tantos outros de negligência, omissão e imprudência. O Brasil precisa buscar os responsáveis por aquela tragédia humana na maior terra indígena do país”, disse.


A crise sanitária e de saúde na maior terra indígena do Brasil está associada ao avanço do garimpo ilegal de ouro e cassiterita, aceito e estimulado pelo governo Bolsonaro. Mais de 20 mil invasores ocuparam o território, inclusive regiões antes intocadas, próximas à fronteira com a Venezuela. A desassistência em saúde contribuiu para a crise.


Em 20 de janeiro deste ano, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) declarou estado de emergência em saúde pública na terra indígena. As ações emergenciais seguem em curso.


O contrato para transporte aéreo de profissionais de saúde e indígenas nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro foi assinado entre o DSEI Yanomami, vinculado ao Ministério da Saúde, e a Icaraí Turismo Táxi Aéreo.


Um dos sócios da empresa era Rodrigo Martins de Mello, conhecido como Rodrigo Cataratas. O empresário foi denunciado pelo MPF (Ministério Público Federal) em Roraima, em novembro de 2022, pela suspeita de liderar uma organização criminosa que explora o garimpo ilegal na terra yanomami.


Mello, que é bolsonarista e disputou sem sucesso o cargo de deputado federal pelo PL, partido do ex-presidente, é suspeito de operar a logística de parte do garimpo no território. A empresa da qual era sócio atuava formalmente na área de saúde indígena no governo, sendo responsável pelos acessos a uma região isolada da Amazônia brasileira.


Em 2020, o sócio de Mello na Icaraí, Paulo Brittes Martins, ingressou com uma ação na Justiça no Paraná -onde a empresa está sediada- para dissolução da sociedade, em razão de uma série de irregularidades elencadas no curso da ação.


O escritório Bandeira Advogados Associados, que representa Martins, anexou ao processo acusações de furto de dois helicópteros por Mello; de pagamentos indevidos pelo DSEI Yanomami a Mello, em conta bancária distinta da indicada em notas fiscais; e de irregularidades na execução do contrato voltado para saúde indígena.


A defesa de Mello disse, em nota, que a polícia arquivou o caso do suposto furto em 2020 e reconheceu que a aeronave pertencia ao empresário. Sobre irregularidades no contrato com o DSEI e aplicação de penalidade, a defesa afirmou que Martins “passou a boicotar a própria empresa para forçar a retirada de Rodrigo Mello”, por deter o “poder de administração nas mãos”. O empresário nega explorar garimpo ilegal na terra yanomami.


Uma decisão judicial em junho de 2022 foi favorável a Martins, com determinação de dissolução parcial da sociedade. No último dia 6, o escritório de advocacia que representa Martins protocolou na PF (Polícia Federal) uma representação criminal contra Mello e contra a gestão do DSEI Yanomami responsável pelos supostos pagamentos irregulares.


“A dissolução da sociedade ia acontecer de um jeito ou de outro, os sócios não estavam se entendendo”, disse a defesa de Mello. “Rodrigo Mello nunca foi comunicado dessa representação criminal. Se intimado for, prestará os esclarecimentos cabíveis.”


A PF disse ter dado encaminhamento ao setor responsável, sem especificar qual.


O mesmo coordenador do DSEI citado na representação fez a comunicação sobre penalidades à Icaraí Turismo Táxi Aéreo, em razão do descumprimento do contrato. A notificação foi feita em 31 de março de 2021, pelo então coordenador Rômulo Pinheiro de Freitas. No mesmo dia, houve a rescisão do contrato, de forma unilateral pelo DSEI.


A penalidade aplicada -impedimento de participar de novas licitações com a União por dois anos e multa de R$ 217,6 mil- levou em conta irregularidades na execução do contrato. A mais grave, conforme o aviso do DSEI, foi a suspensão do fornecimento de helicópteros com a alegação de falta de pagamento, mesmo existindo um saldo de horas de voos a ser cumprido.


No período em que o DSEI ficou desguarnecido de transporte aéreo para saúde indígena, entre 3 e 16 de dezembro de 2020, houve mortes de crianças nas comunidades de Kataroa e Waputha, que ficam na região de Surucucu, conforme a comunicação feita pelo distrito aos sócios da Icaraí. Também houve fechamento de unidades de saúde.


Surucucu é uma das regiões da terra indígena mais impactadas pela crise humanitária e sanitária. Os atendimentos na emergência em saúde se concentram em Surucucu e Auaris, esta última já colada na fronteira com a Venezuela.


O DSEI disse aos sócios da empresa de táxi aéreo que o serviço prestado era essencial para acesso a comunidades isoladas. A interrupção acarretaria paralisação de socorro médico e risco de morte iminente, conforme o distrito.


Outra irregularidade detectada foi a operação de helicóptero sem certificado de operador aéreo, por pelo menos 14 dias, em junho de 2020. O DSEI afirmou não compactuar com prática clandestina de transporte de passageiros.


Em nota, o Ministério da Saúde disse que o descumprimento do contrato é apurado pela Corregedoria-Geral da pasta. “A atual gestão não compactua com esse tipo de postura.”


De acordo com o ministério, o Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira) do governo federal faz cruzamento entre CNPJ da empresa e titular das contas bancárias para evitar transferências a terceiros.
A Icaraí foi detentora de contratos para transporte de profissionais de saúde e indígenas de outros territórios. De setembro de 2018 a fevereiro de 2021, a empresa recebeu R$ 30,6 milhões do governo federal.


Rômulo Pinheiro de Freitas foi coordenador do DSEI Yanomami de julho de 2020 a janeiro de 2022. Foi substituído pelo ex-vereador de Mucajaí (RR) Ramsés Almeida da Silva. Os dois chegaram ao cargo por indicação de grupos políticos locais.


Os ex-coordenadores são investigados por PF e MPF (Ministério Público Federal) por suposta fraude em esquema de fornecimento de medicamentos aos indígenas. As casas dos dois e de mais cinco pessoas físicas e jurídicas foram alvos de busca em novembro de 2022. Conforme as investigações, fraudes deixaram 10.193 crianças yanomamis sem assistência contra verminoses.


A reportagem não localizou os ex-gestores do DSEI Yanomami

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Em janeiro, a PF instaurou inquérito para investigar a suspeita de genocídio contra o povo yanomami. Os alvos da investigação são garimpeiros e operadores da logística do garimpo, coordenadores de saúde indígena e agentes políticos.


A defesa de Mello afirmou que o empresário não tem relação com as acusações de genocídio.


“No período em que prestava serviços para saúde indígena, não houve nenhuma denúncia nesse sentido. A desnutrição dos povos indígenas, noticiada em 2023, deve ser apurada, e os responsáveis, responsabilizados perante a Justiça.”

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