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Brasil

Amamentação em público: como explicar a cegueira do preconceito

A mulher segurava seu segundo filho nos braços, enquanto o mais velho, de 6 anos, brincava ao lado em busca da atenção da mãe

Redação Jornal de Brasília

01/03/2023 21h11

Arte: Lara Oliveira

Lara Oliveira
(Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB)

“Coloca um paninho. É feio ficar mostrando o peito assim”. Em 13 de outubro de 2022, sentada em frente ao setor do banco de leite do Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), estava uma mãe com seu bebê no colo.

Viviane Santos, de 30 anos, é dona de casa e mora no Riacho Fundo II. A mulher segurava seu segundo filho nos braços, enquanto o mais velho, de 6 anos, brincava ao lado em busca da atenção da mãe. Ao ser questionada por mim sobre sofrer preconceito por amamentar em locais públicos, destacou uma palavra: hipocrisia.

“Eu me lembro bem de quando tive o meu primeiro filho, em relação ao preconceito que sofria por dar leite em público. Eu achava irônico que, na maior parte do tempo, esse preconceito vinha de outras mulheres que também eram mães e passaram ou passam pela mesma situação”, afirma.

“Desgarra a criança desse peito!”. “Aqui não é lugar para fazer isso!”.”Na minha época, não podia essa safadeza!”. Essas são algumas das frases que Viviane mais ouvia de outras mulheres quando amamentava em algum local público. Ela ainda destaca que as mulheres mais velhas eram o público que mais a atormentava com esses comentários.

“Parecia que queriam me dar algum tipo de lição sobre ser mãe. Eu reparava que a maioria dessas mulheres se incomodava por ciúmes de maridos ou porque eram mais velhas e experientes nisso”. Então, começaram a dizer a ela que era errado expor o corpo, o que a deixava constrangida.

Ainda sentada em frente ao HMIB, Viviane parou um pouco e seu olhar se perdeu no horizonte. Perguntei se o preconceito já a impediu de atender ao direito do seu filho. Um sorriso se fez presente em seus lábios e, com orgulho, ela negou.

“Ele precisava de mim. Só eu poderia prover o que ele queria, fora que a criança não tem hora para mamar, é um direito do meu filho, mais ainda do que o meu. Foi complicado lidar com todo esse ódio. Era impossível fingir que eu não ouvia essas coisas, mas eu não podia deixar que isso impedisse meu filho de ter seu alimento. Foi uma honra pra mim ter amamentado. Hoje, com meu segundo filho no colo, o meu pensamento é o mesmo”.

Amamentar ainda é um tabu

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o leite materno é o melhor alimento que as mães podem oferecer aos seus filhos em razão de todos os benefícios que ele proporciona para a saúde do pequeno, como prevenir infecções e diarréia, reduzir risco de obesidade e corroborar com um desenvolvimento saudável. No entanto, as mães sofrem preconceito e constrangimentos por amamentar em locais com público.

Um estudo realizado pela Lansinoh Laboratórios, entre os meses de abril e maio de 2015, apontou que 98% das brasileiras entrevistadas acreditam que o aleitamento materno é a melhor forma de nutrir o bebê. O estudo também apontou que 64% das mães e gestantes do país consideram a ação perfeitamente natural, enquanto 16,2%, a consideram constrangedora e 1,7% acham que é algo errado. 47,5% das brasileiras relataram já terem sofrido preconceito por amamentar em público. Ao todo, foram entrevistadas 13.348 mães e gestantes.

Os locais apontados na pesquisa como os mais delicados para alimentar os bebês em decorrência da sexualização do corpo feminino são: viagens de ônibus, carro, avião e trem; mercados, shoppings, restaurantes e cafés.

“Eu me senti invadida…assediada”

Magda dos Santos Conceição, outra dona de casa, de 60 anos, está sentada no sofá em frente da casa de sua vizinha no município de Pirapora, norte de Minas Gerais. Ela acessa uma rede social pelo celular e se depara com vídeos divulgados por mulheres que sofreram preconceito por amamentar em público. Magda lança um olhar para o alto e se recorda de 41 anos atrás. Ela se volta para mim e conta de quando sofreu uma situação semelhante.

O ano era 1981, na cidade do Rio de Janeiro. Magda tinha dado à luz ao seu segundo filho há pouco tempo. Ficou alguns dias no hospital até finalmente ir para casa onde morava sozinha. Era “mãe solteira”. Recebia frequentemente a visita da família, principalmente dos pais, além de amigos que prestavam apoio à recém mamãe. Em uma das visitas, Magda recebeu uma amiga e o namorado.

A conversa fluía bem entre os três, até que um choro se fez presente no ambiente próximo dali. A criança de pouco menos de 3 meses de idade chorava sobre a cama de casal do quarto de Magda, anunciando que sentia fome e queria mamar. Ela então deixou os amigos na sala e se dirigiu ao seu quarto, pegou seu filho no colo, se sentou e abaixou uma das mangas da blusa, permitindo que a criança pudesse ter acesso ao seu alimento natural.

Estava amamentando quando o namorado de sua amiga parou na porta do quarto e ficou olhando por vários minutos até demonstrar contrariedade pela situação e bombardeou a dona da casa com palavras ofensivas. “Você acha certo se expor assim? Tem um homem presente, o homem da sua amiga. O que ela vai pensar?”. Uma pausa silenciosa perdurou pelo ambiente enquanto Magda recordava a angústia daquela situação.

“Eu me senti invadida, assediada… estava em um local íntimo de casa e ainda assim fui repreendida”, relata Magda sobre o constrangimento que passou naquela situação. Casos semelhantes não voltaram a se repetir com Magda, que, desde esse dia, não se importou mais em amamentar em público, pois sabia que estava no seu direito e, principalmente, da criança. No entanto, ela dizia ainda notar o olhar de mulheres, principalmente mais velhas, que a julgavam mesmo sem precisar dizer uma só palavra, mas que era evidenciado com os cochichos em volta.

Leis que protegem o direito das lactantes

No Brasil, existem algumas leis que protegem o direito ao alistamento materno em locais públicos. A Lei 8069 é a primeira a defender esse tema e surgiu em 13 de julho de 1990. Localizada no Artigo 9° do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), diz que “é assegurado à lactante o direito de amamentar a criança em todo e qualquer ambiente, público ou privado, ainda que estejam disponíveis locais exclusivos para a prática”.

Em 2019, surgiu uma outra que, além de regularizar o direito, também multa o preconceito contra a mãe e o bebê. A Lei n° 514 assegura o direito de amamentar em local público ou privado sem sofrer qualquer impedimento e estipula uma multa de 3 a 20 mil reais para quem constranger ou impedir as mães de exercerem esse direito.

O Ministério da Educação (MEC) assegura, desde 2018, o direito à amamentação nas escolas, universidades e outras instituições federais de ensino, independentemente da existência de instalações destinadas para esse fim.

“Eu quis… mas a sociedade não me deixou amamentar meu filho em público”

A aposentada Neuza Augusta de Oliveira, 68 anos, moradora do município de Buritizeiro, no norte de Minas Gerais, mãe de 3 filhas, estava sentada em uma cadeira de madeira que fazia conjunto com a mesa da área de serviços de sua casa. Ali, questionada sobre sua relação com a amamentação em público e possíveis preconceitos que sofreu, a frase que saiu de sua boca foi: “Eu quis…mas a sociedade da época não deixava eu amamentar em público”.

Ela conta que o preconceito a atingia com frequência em todas as fases em que foi mãe, muitas vezes, vindo da própria família. “Meus próprios familiares diziam que eu não podia amamentar na rua, me repreendiam todas as vezes que eu cogitava a ideia, até me constrangiam, mas o que eu podia fazer? Naquela época não deixavam. Diziam que a mulher não podia expor seu corpo assim”, recorda com detalhes desse tempo.

“Houve um caso em que eu me senti destruída”. Era 1978. Neuza atravessava a avenida com a filha caçula nos braços, que tinha 2 anos na época. Estava indo em direção à sua casa depois de resolver assuntos no Posto de Saúde Familiar (PSF) quando a criança começou a chorar, denunciando que estava com fome.

Neuza me contou que estava pronta para revelar um de seus seios e satisfazer a vontade da criança, quando então uma mulher, junto de seu marido, passou por perto e gritou: “Não pode! Aqui não, tem que deixar a criança chorar até ela não sentir mais fome”.

“Minha filha chorava de espernear de fome, mas o constrangimento não me deixou dar o peito pra ela naquele momento”, ela abaixa um pouco a cabeça, dizendo que toda vez que se lembra do episódio se sente mal consigo mesma. “Eu cresci com o pensamento de que amamentar em público era errado”, complementa.

Hoje, anos depois da experiência, Neuza pensa em como tudo teria sido diferente se a amamentação em público fosse incentivada naquela época, ao invés de ser ensinado como uma atitude inadequada . Ela percebe que se tornou cega para uma necessidade básica de qualquer ser humano. Neuza abriu seus olhos e, se tivesse a chance de ser mãe novamente, amamentar o filho em público seria uma honra.

Visão sexualizada

A psicóloga social Andreia Crispim explica que a sexualização do corpo da mulher durante a amamentação em público acontece pelo ponto de vista moral conservador da sociedade brasileira que, segundo ela, ainda é muito machista.

“O papel principal da mulher antigamente era satisfazer o homem e garantir a proliferação da espécie. As mulheres não tinham direitos e precisavam obedecer seus maridos, eles eram a autoridade. Expor o corpo era sinônimo de libertinagem. A amamentação em público era, e ainda é, mal vista por causa da moral social”, esclarece a especialista.

Ela ainda explica o porquê de existir preconceito, mesmo com a divulgação de campanhas e movimentos sobre o direito ao aleitamento materno em público. “Ainda que a situação tenha melhorado sobre a censura com as mães, é algo que se enraizou. Aqui no Brasil, o preconceito com o corpo da mulher e a sexualização são bem fortes, visto que um ato natural como esse é criticado pela exposição de uma região do corpo feminino que é associada ao prazer sexual”.

Para a psicóloga, abordar educação sexual nas escolas desde cedo é uma maneira de conter essa visão deturpada e sexual do corpo feminino e naturalizar a amamentação em público, na busca de conter o preconceito estrutural.

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