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Brasil

25 anos após parar de correr, Carmem de Oliveira alerta para machismo no esporte

Aos 17, Carmem começou a praticar atletismo e continuou no esporte durante 16 anos. Após as Olimpíadas de Barcelona, ela abandonou a carreira

Agência UniCeub

13/05/2021 20h42

Vinte e cinco anos após a participação nas Olimpíadas de 1996, e a posterior aposentadoria no mesmo ano, a ex-atleta brasiliense Carmem de Oliveira, recordista entre brasileiras na Maratona de Boston e vencedora da São Silvestre em 1995, diz que as mulheres tem menos espaço e reconhecimento.

Aos 17 anos, Carmem começou a praticar atletismo e continuou no esporte durante 16 anos. Após as Olimpíadas de Barcelona, ela abandonou a carreira profissional e começou a praticar somente por hobbie.

“A carreira do atleta é bastante curta, depois de concluir as metas definidas, o atleta já pensa em concluir a carreira.”, explica.

A atleta acrescenta que há desigualdade de gênero dentro do esporte, o que existe até hoje. “Desde as premiações dadas aos homens até questões financeiras, não havia nenhuma igualdade sequer. E a desculpa sempre era por conta da quantidade de atletas que tinham em cada prova, algo bem machista.”

No período, Carmem criticou as condições impostas, mas não recebeu apoio.  Para ela, o atletismo foi o que a fez perceber que ela era um ser pensante e a ajudou a entender mais da vida e de como funcionam as classes sociais. A primeira brasileira campeã da São Silvestre avalia que a mídia precisa ajudar os atletas. 

Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Carmem de Oliveira

Agência UniCEUB: Por quanto tempo você praticou atletismo e quando começou a praticar essa modalidade? 

Carmem de Oliveira –  Eu comecei a praticar aos 17, quase 18 anos. A carreira do atleta é bastante curta, e não eu não passei mais do que 16 anos nas pistas de corrida pelo mundo.

Assista a trecho da entrevista

Agência UniCEUB: Você ainda pratica o esporte atualmente?

Carmem de Oliveira – Não. Eu parei de correr, já tem mais de vinte anos. Eu parei de correr em 96(Um ano após a vitória na corrida da São Silvestre). Após 1 ano da minha maior conquista, eu já estava decidida em parar. O atleta vive uma disciplina bastante dura para conseguir alcançar seus objetivos e metas estabelecidas, então depois de todo o sucesso e grande fase, optei por parar de vez. Voltava algumas vezes para brincar. Quando eu recebia algum convite, eu não queria chegar no local de forma obesa, com isso, antes das corridas em que eu era convidada, eu me preparava e treinava antes, mas sem aquela mesma disciplina que eu vivia enquanto profissional.

Agência UniCEUB – Como era o cenário esportivo na época, principalmente feminino, quando você começou a praticar? E o que mudou para os dias atuais?

Carmem de Oliveira – Não havia nenhuma igualdade de gênero. Nós percebíamos desde a estatueta que era colocada como prêmio para as provas masculinas comparadas com as premiações que eram dadas às mulheres até as questões financeiras e salários completamente desproporcionais. Tudo para o homem era imenso, mais bonito e mais composto em termos de valores e para mulher era mais mirrado. Sempre com a justificativa que estavam em número menor. “Ah, mas aqui temos 700 corredores. Desses, apenas duzentos são mulheres.” E que para nós mulheres era muito comum.

Eu, que sempre fui muito pobre, achava normal todas essas coisas. Muito mais pela nossa origem. Era comum esse patriarcado. Atualmente, quando me perguntam sobre igualdade de gênero, eu só consigo ver hoje. Na época, não existia isso, era muito comum desigualdade. Tanto é que quando eu fui para a primeira prova e que eu questionei sobre o valor, eu acabei sendo criticada e perguntada se eu só tinha interesse no dinheiro e não tinha paixão pelo o que eu fazia. “Olha  só que mercenária, vai correr por dinheiro”. Até que ponto eu devia esconder minha real necessidade? 

Eu não saio para fazer 100 km por semana por prazer, isso não é prazeroso, eu fazia isso por uma possível mudança de vida, uma mudança que era para adquirir coisas materiais que me faltavam.

Mas mesmo assim, a desigualdade sempre foi muito grande, sempre que tinham piadinhas, a gente ria para não ficar mal com os grupinhos que haviam.

Agência UniCEUB: Como foi sua trajetória até se tornar uma atleta? Teve algum incentivo emocional ou financeiro?

Carmem de Oliveira – Não. Na época não existia esse trato para que você pudesse entender tudo que acontece, a questão da derrota, a questão da ausência da família  nas viagens, a questão emocional. Não existia esse tipo de cuidado. Eu lembro que meu treinador veio com algumas coisas diferentes na minha casa um dia. Ele trouxe substâncias, vitaminas. Eu falei que não queria nada diferente, pode constranger meu pai.

Ele, meu pai que sempre foi trabalhador, pode pensar que como sempre sustentou a família e aí ver você chegando com todas essas coisas, para ele pode parecer que eu estou passando fome e ser uma ofensa a ele. Tinha toda uma cultura a ser seguida lá em casa, sempre foi muito rígida. Quando meu treinador foi conversar com meu pai, parecia um namorado pedindo para namorar com a moça. Para que, então, meu pai entendesse tudo. Até porque eu fui mãe aos 15 anos. Aos 17, o relacionamento com o pai da minha filha já tinha acabado, então eu voltei para casa. Então de repente, aquela filha “errante” volta para casa, e agora “você vai sair correndo pela rua??” “Não vai fazer mais nada?”.

Portanto, meu treinador falou para meu pai que havia uma habilidade em mim, tinha um potencial, ele conseguiu encontrar isso em mim. E isso daria grandes condições para nossa família. João Senna, meu treinador, vendeu esse peixe. Então não teve um trajeto bem desenhado, na verdade é um fruto do acaso. Senna investiu em mim. Na minha primeira competição no Sul do país eu consegui grandes resultados e já comecei a ser observada com maior frequência. 

Agência UniCEUB: Qual a perspectiva da senhora para o esporte, principalmente no atletismo feminino, no Distrito Federal?

Carmem de Oliveira – Eu fui convidada para presidir a federação de Atletismo, e logo na minha primeira assembleia, eu fiquei assustada com a forma que era votado. Não havia uma discussão antes. A minha federação nem sabia o que teria que votar. Então, a gente vai aprendendo estando dentro. Eu lembro que na eleição seguinte tinham pressa em aprovar e o mesmo presidente há mais de 20 anos. Será que é só eu que estou vendo isso? Eu não concordo com as propostas, meu voto foi o único diferente de toda a assembléia.

Essa mudança é necessária para que a mulher possa estar presente dentro do espaço político, dentro das secretarias, dentro dos órgãos que discutem o esporte. Essa mudança não virá para os cargos de pontas que consta nesses espaços. A atuação da mulher não pode acabar, os atletas precisam saber da sua influência a partir da base, a partir do clube, a partir da sua federação… Os atletas precisam estar organizados para a verdadeira mudança, e aí tratando da mulher, precisamos educar uma sociedade e uma geração que respeite a mulher e respeite nossos posicionamentos. Devemos brigar sim. Pedir educação, pedir igualdade social. São tão poucas as mulheres que conseguem ter uma igualdade de valor entre homens e mulheres. O sistema é opressor, machista, patriarcal, esse que vivemos desde sempre.

Agência UniCEUB – O que o atletismo representou na vida da senhora? O que representa até hoje?

Carmem de Oliveira – O atletismo foi a ferramenta para que eu pudesse me perceber como um ser pensante. As amarras da pobreza te colocam em condições que você se assusta com as oportunidades que aparecem. A entrada em determinados países, a ideia de você frequentar certos ambientes parece algo inatingível. E você acaba pegando esse padrão burguês e você quer seguir aquilo. “Eu tenho que usar essa roupa”, “Eu tenho que fazer isso”. O esporte me deixou um pouco pilhada, nesse sentido.

Tem uma hora que o atleta pensa que chegou a uma outra classe social. E a mídia ajuda muito para isso, a mídia coloca antes e depois e vai fazendo comparações. E se você não tem consciência, você acaba entrando nesse jogo. Mas o que fazer? Viver isso como sendo o seu mundo ou se organizar para um futuro que ele desconhece? É uma coisa dolorosa.

Minha filha me disse um dia que parecia que a gente vivia na pobreza por conta de minha segurança financeira pensando no futuro. E além da mídia, as pessoas contribuem também. “Nossa, mas você já foi para mais de 30 países. Você é rica.” Ai, eu olho e penso “Como é que vive rico?” “Como é que é rico?”. Então é necessário ter todo esse controle da realidade que vivemos. E nossos jovens são levados por uma cobrança de mudança rápida, que eles acabam se frustrando. Então minha foi sempre muito serena, muito cautelosa. Mas o que mais ganhei em minha carreira foi esse nível de consciência, mas demorou, viu?

Até você ter consciência de classe e você perceber, sendo você um trabalhador, que você depende da força do seu trabalho.

Você tem sempre que ficar atento ao que se vota no congresso, saber as regras, entender e saber dos seus direitos. Meus filhos dependem de uma estrutura, meus netos dependem de uma estrutura que não estão trabalhando para ela. Não estão permitindo que as gerações futuras tenham segurança em nada, aí você começa a ter esse nível de consciência.

Então o meu maior ganho na carreira de atleta é essa possibilidade de você pensar no mundo, pensar no outro. O atleta, muitas vezes, é preparado para ser egocêntrico, para ser único. Fui brindada a partir do momento que consegui minha conscientização.

Por Filipe Fonseca e Rayssa Loreen

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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