Menu
Morando Fora

O sonho de viver em Portugal tem seus desafios

Arquivo Geral

29/09/2018 8h00

Atualizada 04/02/2019 20h46

Falei outro dia sobre os desafios e os desencontros culturais vividos por brasileiros em Portugal na coluna Longe de Casa, que apresento semanalmente na Rádio CBN. A repercussão foi tão boa que decidi aprofundar o assunto aqui na Morando Fora.

Com base nas inúmeras pessoas que conheço que já foram, estão indo ou querem se mudar para Portugal, e mais o que vi quando estive no país em julho, tive a certeza de que o assunto seria pertinente.

Hoje somos a maior comunidade estrangeira no país. Dados oficiais falam entre 80 mil e 120 mil brasileiros com residência fixa no país. Especialistas, no entanto, afirmam que este número pode ser bem maior.

Segundo o escritório de estatística da União Europeia, cerca de 870 mil turistas brasileiros visitaram o país apenas em 2017. No mesmo ano, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Portugal concedeu mais de 4 mil novas autorizações de residência para brasileiros.

O motivo do êxodo infelizmente é óbvio e segue atual – desemprego, violência, busca por qualidade de vida, traduzida em dignidade para viver: não ficar horas no trânsito, acesso à educação e educação, segurança, oportunidade. Na teoria, a tentativa de realização de um sonho. Na prática, a falta de perspectiva de uma nação, o medo, a insegurança e a falta de perspectiva. O resultado: a fuga de miseráveis, mas também de cérebros, talentos brasileiros que decidem tentar a vida além das fronteiras.

Lado desafiador dessa migração
Embora Portugal tenha fatores como a língua, cultura e comidas conhecidas, que facilitam a adaptação, nem tudo é tão fácil quanto parece. Para uma pessoa que, como eu, mora em país de cultura muito diferente da brasileira e em uma região onde se fala o alemão, a vida em terras lusófonas se apresenta fácil. Mas não se engane, tem suas armadilhas.

Portugal definitivamente não é o Brasil. Existem diferenças culturais entre os dois países, que às vezes dificultam muito. Eu entrevistei alguns brasileiros que vivem por lá. Entre as diferenças culturais, me foram relatados muitos mal entendidos pelas diferenças da língua, a formalidade na comunicação, e alguns preconceitos, tanto contra a mulher brasileira e até com os brasileiros em geral.

Com relação a esse tema, apurei histórias divertidas. A carioca L.V., que viveu em Lisboa durante dois anos, conta que logo que chegou começou a comunicar aos conhecidos que queria fazer bicos para se sustentar. O que ela não sabia é que bico em Portugal significa favor sexual.

Existe um grupo no Facebook chamado Portugal que ninguém conta, elaborado justamente para mostrar que nem tudo são flores. O grupo apresenta um post interessante mostrando as diferenças da língua nas duas nações. Para a lista de materiais escolares dos pais brasileiros desesperados, o post explica que muitos objetos têm outros nomes. Corretivo ou Branquinho, por exemplo, chama-se corrector; grampeador é agrafador; apontador de lápis é apara lápis e assim por diante.

Formalidade na comunicação
Assim como nas variações da língua, também há diferença na forma de comunicação. Um dos primeiros choques citados pelos brasileiros é a formalidade de tratamento.

A paulistana Thais Pavanelli Passos, que chegou em março com o marido, contou que, para ela, foi um choque perceber o grau de formalidade. Ela diz que observa que o português adora ser patrão, ser chamado de senhor ou até de doutor. “Não importa a idade do chefe ou formação profissional, ele quer ser chamado de senhor ou até de doutor”, se diverte.

Thaís trabalhou, logo no início, em uma confeitaria, chamada de pastelaria em Portugal. A brasileira conta que, certa vez, um cliente fez um pedido e ela passou para o colega no balcão, só que sem o grau de formalidade não adequado. Acabou sendo chamada a atenção. “Eu disse: dois pastéis para ele, por favor. O gerente falou na hora, na frente de todo mundo, dizendo que não se diz ele, mas o Senhor quer dois pastéis. Fiquei muito sem graça”, explica, que hoje ri do episódio e depois disso trabalhou com patrões muito generosos.

Preconceito contra a brasileira
Logo que chegou, a carioca L. V. colocou um anúncio oferecendo seus serviços de limpeza e faxina. Recebeu uma ligação de um português querendo saber se, além de limpar, ela fazia convívio. Ela não sabia o que significava a expressão, mas descobriu que era prostituição.

Eu menciono esse caso da L.V. para explicar a má imagem da brasileira, ligada ao sexo e à prostituição. Eu mesma tive a oportunidade de, em 2016, ao participar de uma conferência em Munique, e ouvir a palestra de um professor gaúcho sobre sua dissertação de mestrado, que mostrava o Brasil como o país da sexualidade, de acordo com a narrativa de obras literárias lusófonas.

Esse inconsciente coletivo é relatado por brasileiras como um desafio para fazer amigas, ou ganhar a confiança das portuguesas. Algumas entrevistadas relataram que muitas acham que as brasileiras roubam o marido. Com a pulga atrás da orelha, fui investigar. A má imagem teve seu ápice em 2003 com o movimento do grupo “Mães de Bragança”, que se organizou e fez um abaixo-assinado contra as imigrantes brasileiras alegadamente ligadas à prostituição. Em tese de pós doutorado, feita por Benalva Vitorio, o preconceito contra as brasileiras é o tema principal. Com o título de Imigração brasileira em Portugal: identidade e perspectivas, a tese foi feita no Instituto de Estudos Jornalísticos da Universidade de Coimbra, entre agosto de 2005 e janeiro de 2006.

Outro sintoma de choque cultural é a impressão de que os portugueses são mal humorados e muito mais fechados que os brasileiros. Alguns os consideram frios. Um dos entrevistados contou que quando se diz bom dia, ouve-se a resposta: “ainda não se sabe se o dia será bom”.

Claro que, para quem está desempregado no Brasil ou traumatizado por algum episódio de violência, esses detalhes são meros obstáculos. Mas não podemos menosprezar esses pequenos foras do dia a dia, que minam a autoconfiança até os mais fortes egos. É o que confirma a gaúcha C.B,: “Às vezes penso em arrumar as malas e desistir de tudo. Me sinto muito inadequada na maior parte do tempo”, desabafa a brasileira que não quis se identificar.

Exploração
Funciona como a lei do mercado, o patrão percebe que a situação do requerente à vaga de trabalho é desesperadora, tenta reverter em seu próprio benefício. Como muitos encontram-se em situação irregular ou precisam desesperadamente encontrar um trabalho para pagar as despesas em euro, ficam muito mais vulneráveis, expostos a esse tipo de situação.

Quem não tem visto de residência, só encontra os chamados subempregos. Não importa a formação e experiência que tenha no Brasil. Até porque diploma brasileiro não é muito valorizado na Europa, outra dificuldade latente.

A mineira M.B. conta que sofreu tentativa de exploração. Foi trabalhar como faxineira para uma firma, com a promessa de um treinamento de um dia, que seria não pago. “O patrão disse que eu teria que aprender o serviço, mas que não haveria pagamento. Depois de limpar e perceber que não teria ensinamento nenhum, mas simplesmente trabalho explorado, sem remuneração, percebi a cilada e me retirei”.

Imóveis muito mais caros
Muitos reclamam que, com o êxodo brasileiro, houve especulação imobiliária sem precedentes. Os imóveis, para comprar ou alugar, estão mais caros.

Devido a todas essas dificuldades, muitos brasileiros têm voltado para o Brasil. Mas para os que ficam: como o Victor, que tem um grupo no Facebook, o Brasileiros vivendo em Portugal e Portugal que ninguém conta, para a Thais e seu marido, e para tantos outros entrevistados, a mudança valeu a pena. Cheios de esperança e já com algumas conquistas, não pensam por enquanto em voltar. Prejuízo do Brasil, que vê seus jovens irem embora para tentar a vida em outro lugar.


Liliana Tinoco Bäckert é jornalista e tem mestrado em Comunicação Intercultural pela Universidade da Suíça Italiana. Carioca, tem dois filhos, é casada com um alemão e vive naquele país desde 2005, onde também trabalha como treinadora intercultural independente. Decidiu transformar o próprio choque cultural em combustível para ajudar outros brasileiros que já vivem fora ou que pretendem se lançar nessa aventura globalizada.

 

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado