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Rebeca Gusmão sem papas na língua

Arquivo Geral

18/07/2011 15h58

Vítor de Moraes

vitor.moraes@jornaldebrasilia.com.br

 

 

As notícias sobre testes antidoping positivos estão presentes semanalmente nos noticiários. Em menos de um mês, os resultados adversos de Fabíola Molina, César Cielo e Pedro Solberg foram divulgados. A proliferação de resultados positivos virou rotina. Um dos casos mais conhecidos e comentados é o de uma brasiliense. Há pouco mais de anos, ela foi banida do esporte pela Federação Internacional de Natação (Fina). A decisão foi tomada porque a nadadora teria violado duas vezes as regras de antidoping. Hoje, Rebeca Gusmão é funcionária da Administração de Brasília e está prestes a completar o curso de Educação Física. As acusações de doping ainda a incomodam – e até a fazem chorar. Os troféus na sala da Gerência de Esporte, Lazer e Turismo não deixam que Rebeca se afaste do esporte. Proibida de competir, ela diz que ao menos tenta ajudar quem compete. Nesta entrevista ao Jornal de Brasília, a nadadora brasiliense chama o controle antidoping de “máfia” e deixa a entender que o médico Eduardo de Rose, integrante da Agência Mundial Antidoping, que chegou a dizer que faria de tudo para que Rebeca fosse pega no antidoping, estava atrás dela. E garante que ainda vai recorrer da decisão do banimento.

Em que pé está este processo?
Posso recorrer ao tribunal suíço, que foge da esfera esportiva. Estou com um grupo de amigos que querem fazer um movimento para a gente conseguir entrar nesse tribunal. Custa caro conseguir um advogado suíço. Todo advogado estrangeiro a quem mostro o caso diz ‘não sei por que você ainda não entrou com isso’. Porque realmente é muito absurdo. Eu sei que ainda vai despertar alguém, no meio, que vai falar como as coisas ocorrem.

E você vai recorrer?
Essa decisão está sendo tomada junto com advogados há tempos, está sendo estudada. É muita documentação. Tive acesso ao processo só este ano. São documentos que eu nunca tinha visto, e-mails… Tenho um e-mail que é para deixar qualquer um indignado, trocado pelo (Eduardo) de Rose e um laboratório. Ele diz que trocou o frasco com a minha urina e pergunta se teria como alegar que a urina foi trocada por mim. É por isso que quando vejo alguém falando que o atleta nunca assuma a culpa… Gente, os caras cometem erros atrás de erros e não assumem. Para mim, seria muito mais fácil assumir alguma coisa… Se eu tivesse tomado algo e assumido, eu não teria sido banida. Seria fácil chegar e falar ‘me desculpem, falhei, me perdoem’. Mas não é o caso. como vou assumir erro deles? Quero que as pessoas entendam isso.

Paula Carvalho

À época do banimento, falou-se muito sobre o crescimento de seus músculos…
Vi uma reportagem em um programa esportivo onde mostraram uma mulher que tinha ovários policísticos e que tinha músculos a mais em função desse problema. Na época em que meu caso veio à tona, contestou-se muito o fator de eu ter ovários policísticos. Disseram que era impossível, que crescimento muscular não tem a ver com esse fator que eu tenho, que não é o único. E agora sai uma reportagem falando isso… Não sei se fico triste ou feliz por ter visto essa reportagem. Na minha época tinha médico dando depoimento. E a mulher que apareceu nesse programa? As pessoas têm memória curta. Talvez por isso vivamos em um país longe de ser desenvolvido. A começar pelas pessoas, pelo julgamento.

O que aconteceu com o seu corpo?
Tive minha primeira menstruação com 16 anos, e a segunda com 19. Então, eu demorei a encorpar. Nas Olimpíadas de 2004, eu pesava 75 quilos. No Pan-Americano de 2007, eu estava com 81 quilos. Ou seja, em três anos, eu ganhei seis quilos, não só de massa muscular, ganhei também um pouco de gordura. Isso para um atleta de alto nível é a coisa mais normal do mundo. O Michael Phelps, o Thiago Pereira, eles podem ganhar quilos. Uma atleta, por ser mulher, já que vivemos num país machista e preconceituoso, não pode ganhar. Esse pré-julgamento das pessoas é que acaba interferindo em várias coisas. Acredito que o doping existe, sim, mas a turma do bem não é a turma que caça os atletas. Pelo contrário, não passa de uma máfia, de um grupo de politicagem. A política é importante, mas a politicagem, principalmente no esporte, é uma coisa que não deveria existir.

O que você pensa sobre as pessoas que lhe julgam?
É muito fácil julgar. ‘Ah, aquele atleta é dopado’. Todo mundo acha que atleta é o cara vagabundo, que treina, viaja, e ganha muito dinheiro. Vou te falar… Eu acordava às 4h para treinar, ia para a escola, voltava e ia treinar. Nunca ganhei muito dinheiro com natação. As pessoas acham que sou rica. Eu não sou. Tive de vender muitas coisas para conseguir pagar processos. Ainda estou devendo muito dinheiro. E não ia gastar se tivesse culpa. Isso tudo para a gente representar o Brasil e ainda ter de escutar certas coisas… Já competi com dor, com dedo quebrado, com febre de quase 40 graus. A gente realmente faz por amor. Se fosse por dinheiro, não ia nem começar.

Como começaram as acusações contra você?
Tudo começou em função de um exame meu ter dado contaminado. O laboratório descartou, porque eles preferem não analisar urina contaminada com bactéria para não gerar falsos positivos. E o laboratório informou que uma pessoa do Brasil pediu para dar prosseguimento. Então, o laboratório pegou a urina de volta e fez a análise. Foi quando gerou o suposto positivo. Você já vê que existem certas coisas por trás. Apenas três pessoas sabiam que aquela urina era minha. Eu, a pessoa que me acompanhou no controle de doping e o doutor De Rose. Então assim, a pessoa responsável pelo controle, que interesse ela tinha de ligar? Nenhum. Eu? Para que eu ia ligar para laboratório? Então… (pausa). Não estou falando que existe teoria da conspiração, eu tenho fatos concretos do que aconteceu comigo, do que eu ouvi. No meu julgamento, o médico De Rose falou que a mídia nacional inteira mentiu, que ele não deu nenhuma declaração de todas que saíram. E a mídia ainda o vangloria, como a pessoa que mais entende, a maior autoridade. Uma das afirmações que vi quando peguei a decisão foi que em momento algum eu me manifestei em relação à prova B. Eu tenho três documentos que comprovam que eu solicitei a prova B. Eu fui à Suíça solicitar. Como eles justificam meu banimento dizendo que eu não me manifestei? Eu tenho tudo isso em papel, tudo, tudo, tudo registrado…

Paula CarvalhoEm que estágio da sua carreira tudo isso aconteceu?
Sem dúvida nenhuma eu estava chegando ao meu ápice. Tinha ido para o terceiro Pan-Americano, estava indo para segunda Olimpíada, tinha participado de oito campeonatos mundiais. Só faltava o titulo olímpico. Na fase em que eu me encontrava… Eu estava com a cabeça nos Jogos de Pequim para ser, do mesmo jeito que fui a primeira medalhista de um Pan, a primeira mulher brasileira na natação a conquistar uma medalha olímpica. Não tenho duvida que estava chegando ao ápice, ao cume.

Você tem vontade de voltar a nadar?
Vou ser sincera… Não sei se teria vontade, até porque hoje meus projetos são outros. Mas acho que eu posso mudar de opinião, hoje em dia digo que não. Até porque pra eu voltar, muita gente ia ter de sair, senão ia acontecer tudo de novo. Então, não tem nem como falar isso. Mas sinto muita saudade, acho que é como uma relação com alguém. Você sente saudade, tem dias que fica mais para baixo. Mas agora estou trabalhando, tenho ajudado muitas modalidades e atletas, tenho brigado por eles. Acho que a maior satisfação de alguém que já subiu no lugar mais alto do pódio é proporcionar a mesma sensação a outras pessoas. Hoje estou muito feliz, estou bem, aprendendo muita coisa. Mas não sei. Talvez pudesse voltar para provar o que foi perdido por tanto tempo.

Nas decisões em relação ao doping, existem dois pesos e duas medidas?
Sim, sem dúvida. Quando a Daynara (de Paula) foi pega no doping, devido à mesma substância que o César Cielo, ela foi punida por um tempo maior. Está aí. A gente tem exemplo de nadadora, com a mesma substância, em que teve tempo maior de punição. E eles (CBDA) falam que levam em consideração as competições daquele ano… Isso é balela. Porque ela perdeu o Mundial, que era a competição mais importante do ano, ela perdeu uma seletiva para o Pan-Americano, seletiva para esse Mundial… Era tão importante quanto, não existe isso. Se o Cielo for punido, ele vai ficar fora do Mundial, fora do Pan, e, pelo novo código, fora da Olimpíada do ano que vem, já que se você é suspenso a partir de seis meses, não pode participar da próxima Olimpíada. Se ele receber só advertência, pode participar. A gente torce para que não aconteça nada com ele, é um nadador espetacular. Ele não precisa de nada para ser o que é. Mas infelizmente aconteceu e justiça tem de ser feita. A justiça é a mesma para todo mundo. Se a Daynara tivesse tomado advertência, tudo bem. Mas não foi o caso. Tudo bem que médico fale que o diurético não melhora o desempenho. Mas ele mascara outras substâncias, é pior.

Você mudaria alguma substância na lista de proibidos da Wada?
Recolocaria a cafeína. Eu lembro que a cafeína era considerada doping. No Pan-Americano de 1999, teve uma atleta que foi pega, em outubro foi suspensa. A partir de janeiro, a cafeína não ia mais ser considerada doping, e ela ficou suspensa por dois anos. Hoje, os atletas se entopem de cafeína. Ela é um dos estimulantes mais fortes, eu sou contra, tinha de ser doping. Faz um mal danado à saúde. O atleta toma 12 vezes mais a quantidade que qualquer médico recomendaria de café por dia. Eles tomam em forma de cápsula uma quantidade que equivale a mais de 100 xícaras de café. Já li vários artigos científicos relacionados ao mal que a cafeína faz. Houve uma época em que estavam discutindo se voltaria a ser proibido.

Você já teve problemas com medicação que precisava tomar e não podia?
Houve vezes em que tive crises de asma, chegava ao hospital e não podia tomar o corticóide porque tinha de esperar autorização da Confederação, da Federação Internacional chegar para poder tomar. Se eu morresse… Às vezes chegava em duas hora… Em uma dessas crises, eu já estava nesse processo da acusação de doping, não tinha sido suspensa ainda, e o médico falou que eu tinha de tomar o corticóide. Eu falei que não tomaria de forma alguma, porque não queria mais transtorno na minha vida. Preferi aguentar a dor a ter outro problema. Para tomar qualquer medicação, o atleta tem de consultar o médico da CBDA, do COI. E ele não está sempre disponível. Tive um problema quando morava nos Estados Unidos. Machuquei o joelho, e o médico de lá receitou uma medicação e eu não conseguia falar com o De Rose, com a doutora Renata, com ninguém. E ai, como o atleta fica? Com dor?

O que você pensa sobre o caso do Cielo?
Fiquei triste por ele, é um atleta exemplar. Não vou julgar se ele tomou ou não a substância. Isso diz respeito a ele. Torço muito para que o Cielo tenha força neste momento. Muita gente escreve coisas que não são verdadeiras. Infelizmente, temos de tomar cuidado. Nem sempre quem quer ajudar vai ajudar. A forma como as coisas são tratadas… A Confederação teve comigo, no inicio, a mesma postura, de averiguar o caso, de mandar fazer exames, acompanhar. Mas, do nada, o vento muda de lado. Fui absolvida na justiça esportiva brasileira, é uma das coisas que poucas pessoas sabem. Ficou provado que o lado de lá foi o lado que faltou com a verdade. A Corte Arbitral do Esporte pediu a decisão da justiça brasileira porque foi a única que ouviu todas as pessoas envolvidas. Certas coisas a gente realmente não consegue entender. A gente, que é atleta de alto nível, escuta muito “cala-boca”. Temos de fazer vista grossa para muita coisa. Eu bati de frente. Não concordei. Eu falei ‘não vai ser assim, quem fez isso vai ter de pagar’. E é mais fácil me tirar de circulação.

Como foi seu suporte durante as acusações e o banimento do esporte?
Sempre fui uma pessoa de muita fé em Deus. Não precisei de ajuda psicológica, de remédio, nada. Meu marido foi um suporte muito grande, meus amigos. Mas mesmo assim, se você não busca uma força fora disso, você não consegue superar. Eu lembro que às vezes eu chegava à casa da minha mãe querendo colo e ela estava chorando. (pausa) Então… se você não tem aquela força de dentro, você não consegue… Às vezes eu pegava o carro e saía, pedindo justiça para Deus. Às vezes eu não sabia se ele realmente me queria fora desse meio, por achar que eu era uma pessoa grande demais para estar em um ninho de cobras desse. Minha avó faleceu ano passado devido a problemas no coração que começou a ter em função de todo esse processo, eu era uma das netas mais queridas. Minha mãe emagreceu vinte quilos, meu pai emagreceu dez quilos. Minha família inteira sofreu com isso. E o responsável não está atrás das grades.

Você está praticando outros esportes?
Estou um pouco parada em função do trabalho mesmo, da faculdade que estou terminando. Mas é engraçado porque não consigo sair desse meio, volta e meia me chamam para jogar um campeonato, ou para uma competição de supino. Às vezes prefiro nem ir para não ter aquela vontade de novo, aquela rotina de treino. É como uma relação com uma pessoa. Vocês terminam de uma forma horrível. Você não quer nem ouvir o nome da pessoa. E no meu caso não tem como, foi uma relação que durou quase 20 anos, comecei a nadar com três, quatro anos. Não tem como eu ficar sem ver, sem passar por uma piscina e não lembrar. É mais difícil, mas… É um dia após o outro, a gente vai superando, tocando a vida. A vida não para.

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