Bastaram sete meses, um título paulista e uma boa campanha no Campeonato Brasileiro para que Kléber sentisse no Palmeiras a sensação que lhe acompanhou em toda a carreira: amar o local em que vive. A insistência em querer ficar no clube faz com que a torcida até esqueça sua origem no arqui-rival São Paulo e grite cada vez com mais intensidade seu nome nas arquibancadas do Palestra Itália. E até o atacante prefere não lembrar de sua saída do Morumbi.
Em fevereiro de 2008, Kléber empossou a camisa 30 alviverde sob desconfiança. Poucos lembravam de seu futebol, escondido por quatro anos na Ucrânia. Sua passagem como profissional no Tricolor foi rápida. Em 2003, aos 20 anos, se firmou no time comandado por Roberto Rojas que levou os então bicampeões da Libertadores novamente à competição continental depois de dez anos de ausência.
O desempenho o levou para a seleção brasileira sub-20 que levantou o Mundial da categoria há cinco anos, nos Emirados Árabes. Titular em um time que tinha Nilmar, Dagoberto, Daniel Carvalho e Dudu Cearense, Kléber despertou o interesse do Dynamo de Kiev. Ao ver a proposta de US$ 2,2 milhões à frente, os são-paulinos não titubearam em aceitá-la, a contragosto do jogador. Com o dinheiro, o clube montou o elenco campeão mundial em 2005. E o atacante deixou o Morumbi acusando os diretores, que teriam lhe ameaçado com a volta aos juniores caso se recusasse a atuar na Ucrânia.
Bravo, Kléber foi. E se deu bem, mas só dentro de campo. Teve a oportunidade de jogar a Copa dos Campeões e, longe dos olhares brasileiros, levantou seus primeiros títulos interclubes como profissional: foi bicampeão ucraniano (2004 e 2007) e tricampeão da Copa da Ucrânia (2005, 2006 e 2007). Com o mesmo estilo aguerrido que hoje é punido com cartões no Palmeiras e de sobrenome italiano (Giacomance), foi chamado pela torcida local de “Gladiador”, em alusão aos indivíduos que matavam leões e adversários humanos no Império Romano para divertimento do público. Sentia-se tão querido que ainda chama a seleção ucraniana de “nossa”.
O bom ambiente, porém, se limitava aos jogos oficias e as arquibancadas. Nos primeiros meses em Kiev, o atacante sofreu na pele a exigência tricolor por sua ida ao Leste Europeu. Sozinho no país desconhecido, estava tão desacostumado com a neve que chegou a desmaiar tentando limpar seu carro com as mãos. Foi salvo por um desconhecido, mas não pôde agradecer por desconhecer a língua. “Eles têm um tradutor que pode te ajudar dentro do clube, mas ele não vai estar com você 24 horas”, relembra, sem esquecer da razão por ter aprendido a jogar “mais duro”. “Tive problemas de adaptação com o pessoal, discutia e brigava muito nos treinamentos porque o pessoal batia bastante”.
Mesmo com a saída forçada, Kléber tentou pôr fim ao martírio na Ucrânia propondo um retorno ao São Paulo em janeiro. Ouviu um “não” de alguém que prefere nem citar o nome. Mas ouviu “sim” do Palmeiras e foi emprestado até junho. No reencontro com o antigo clube, fez um golaço na goleada por 4 a 1 em Ribeirão Preto na primeira fase do Paulista e virou manchete com cotovelada em André Dias. Sua fisionomia era de raiva pelo desprezo.
Pouco depois, caiu nas graças do Verdão e prorrogou vínculo até dezembro, sonhando com a permanência definitiva em breve. Para muitos, já é ídolo. E a condição já faz com que o atacante amenize as palavras com o arqui-rival que o revelou. “Sinto uma gratidão e um carinho enorme pelo São Paulo. Conheço quase todos os funcionários fora de campo. Já a torcida, na hora que ela começou a sentir que eu era um jogador importante, me venderam. Queria ficar, mas tive que sair. Mas hoje estou e muito feliz no Palmeiras”, argumenta.
De origem humilde em Osasco, o jogador tem vestido a camisa alviverde com o mesmo espírito de “matar um leão por dia” da infância. E enumera razões para se sentir mais querido do que no Morumbi. Segundos depois de atender a todos os pedidos de fotos e autógrafos de um grupo de 20 palmeirenses composto por crianças, adolescentes e adultos na concentração do elenco em Atibaia, Kléber sentou para conversar com a reportagem da Gazeta Esportiva.Net. E contou detalhes de sua mágoa já esquecida pelo São Paulo, a parceria com Alex Mineiro, a vida na Ucrânia e por que os dias que sucederam a primeira derrota em casa no ano se tornaram a pior folga de sua carreira.
Você é sempre abordado por fãs palmeirenses, seu nome é gritado intensamente nas arquibancadas principalmente depois da saída do Valdívia… Dá a impressão que você já é ídolo no Palmeiras. Você se sente assim?
Kléber: Não digo ídolo, mas me sinto muito importante. A torcida que nomeia um ídolo, sente aquele cara que veste a camisa, joga com vontade e é muito bom jogador. Tenho mostrado isso, tenho jogado bem. Independentemente de gol ou ter jogado bem, o que a torcida cobra mesmo é garra, determinação, e isso eu tenho de sobra. O torcedor se identifica muito comigo por causa disso.
Junto com o Alex Mineiro, você acha que faz a melhor dupla de ataque do Brasil?
Kléber: Cheguei no Palmeiras e fui recebido muito bem. Conhecia o Alex só de ver jogar no Atlético-PR. A gente é muito diferente e se encaixou muito bem pelo estilo. Ele é muito calmo e eu sou mais explosivo. Dentro de campo, sou brigador, aquele jogador que pega a bola, tenta driblar, fazer uma jogada, roubar a bola e corre bastante. A gente se deu muito bem e se completou, isso é importante. Temos ajudado o Palmeiras, ainda bem. Conseguimos conquistar o Paulista e esperamos conquistar o Brasileiro. É difícil, mas estamos muito bem e esperamos continuar com isso no ano que vem.
Então a sua intenção é ficar?
Kléber: Quero ficar. Fui muito bem recebido aqui e tenho um carinho enorme pelo Palmeiras.
Mais que pelo São Paulo?
Kléber: Acho que sim, pelo meu tratamento hoje aqui. Vivi na base do São Paulo e sempre fui muito bem tratado lá, mas aqui foi diferente porque já sou um profissional. Lá tinha amigos, aquela molecada que vem de fora do estado, mora todo mundo no alojamento… Mas aqui cheguei como profissional e fui encarado dessa forma. No São Paulo, nunca fui encarado como profissional, tanto que, quando comecei a jogar bem, já me venderam. O Palmeiras me recebeu muito bem, me abriu as portas, tem mostrado interesse com que eu permaneça e isso é importante para mim. Tenho um carinho muito grande pelo São Paulo, mas hoje quero ficar no Palmeiras o tempo que eu puder.
Mas por que você se sente mais querido no Palmeiras?
Kléber: Subi para o profissional do São Paulo com 17 anos, fui a alguns jogos, como contra o Palmeiras no Brasileiro e o Botafogo-PB na Copa do Brasil, em 2001. Voltei para a base, depois subi de novo em definitivo em 2003 e comecei a treinar, jogar, ganhar meu espaço. É complicado para um jogador da base virar importante, se identificar com a torcida. Mais do que para quem vem de fora, que já tem um nome. Eu era muito novo. Ninguém me conhecia, era mais uma promessa. Era difícil a torcida já pensar: “O Kléber, vai ser ídolo”. Mas fui bem, principalmente no segundo semestre, comecei a jogar mesmo de titular, indo muito bem em todas as partidas. Na Sul-americana, fiz cinco gols em cinco jogos. Na hora que o torcedor começou a sentir que eu era um jogador importante, que podia dar futuro, tive que sair. Foi bom para o São Paulo na época e para mim também.
Com tudo isso, o que você sente hoje pelo São Paulo?
Kléber: Tenho uma gratidão e um carinho enorme. Foram dez anos da minha vida ali, não tem como esquecer. Nasci e cresci ali dentro. É difícil largar tudo isso. Faz parte da minha vida, da minha história, é o clube que me revelou para o futebol. Conheço muita gente lá, praticamente todos os funcionários. Mudaram os jogadores, claro, mas conheço muito o pessoal de fora do campo e tenho muitos amigos lá.
Mas quando você voltou da Ucrânia, não teve uma tentativa do São Paulo em te contratar?
Kléber: Quando surgiu a possibilidade de eu voltar, falei para o meu empresário que gostaria de voltar para o São Paulo, o clube que me revelou, onde vivi dez anos. Na época, ele estava negociando o Rodrigo com eles e perguntou se tinha interesse em mim. Teve um cara lá que falou que não, e aí vim para o Palmeiras. Mas prefiro nem ficar falando sobre essa recusa do São Paulo, estou muito feliz no Palmeiras.
Você saiu bem daqui como campeão sub-20 em 2003. Se não tivesse ido para a Ucrânia, poderia estar na seleção?
Kléber: Se eu ficasse, de repente estaria mais fácil, poderia dar continuidade. Você sai da sub-20, logo depois tem a sub-23, e o pessoal já está olhando, iam estar prestando atenção em mim e naqueles jogadores que participaram do Mundial, porque a gente foi campeão do mundo sub-20. Era mais fácil. Fui para a Ucrânia, acabei deixando isso um pouco de lado. Particularmente, não queria tanto, já disse várias vezes que para mim era muito mais importante ter ficado, mas aí pesa a situação financeira.
Você foi para a Ucrânia com 20 anos e ficou por quatro temporadas. Se hoje um time de lá fizer uma proposta por jogadores novos como você na época, como Dentinho ou Maykon Leite, você recomenda aceitar?
Kléber: Cada situação é uma situação. Depende muito da condição financeira do jogador, tem que pensar em tudo. De repente, acontece o que aconteceu com o Maykon Leite, por exemplo, que vai ficar praticamente um ano sem jogar. Quando voltar, não vai ser a mesma coisa, eu sei porque já operei os dois joelhos, demora um tempo para se recuperar. O caso do Nilmar também, que operou um joelho e logo depois operou o outro. O jogador nunca pode pensar no pior, mas tem que saber que pode acontecer. É uma carreira muito curta, tem que pôr tudo isso no papel. Profissionalmente, não é bom para a carreira. Você fica meio escondido. Na Liga dos Campeões, você só entra mesmo para tentar ficar em terceiro lugar (do grupo da primeira fase) e se classificar para a Copa da Uefa. É complicado. Eu não aconselho.
De alguma forma, você se arrepende de ter ido para lá?
Kléber: Não, porque eu amadureci bastante. Como experiência de vida foi excelente. Financeiramente também. Se o cara pensa assim, tem que ir. Mas profissionalmente não. Na época, apesar de não ter uma condição boa por vir de uma família pobre, eu não pensava no dinheiro. Não me interessava se ia ganhar mais ou menos. Queria estar no São Paulo pelo prazer de estar no São Paulo, porque ali foi a minha casa, você sai na rua e é reconhecido, está perto de todas as pessoas que você gosta. Mas não me arrependo.
Mas você já reclamou que a Ucrânia é muito fria, é difícil fazer amigos…
Kléber: Para mim foi muito difícil. No começo, ligava muito para os meus pais, às vezes chorava no telefone. O pessoal é frio, você não fala a língua. Fiquei praticamente seis meses sozinho. Tem um tradutor que pode te ajudar dentro do clube, mas ele não vai estar com você 24 horas. E tem conta de luz para pagar, tem que ir no posto para abastecer o carro, e você não sabe falar. Mas eu aprendi muito.
Teve algum episódio nestas dificuldades que te marcou?
Kléber: Teve um dia que estava muito frio na Ucrânia e eu estava sozinho. Estava morrendo de fome, já era umas oito da noite, ia sair de casa para ir ao McDonald’s. Meu carro estava com muita neve. Limpei com a mão, inocente para caramba, e comecei a não sentir os meus dedos, passar mal. Entrei no carro, liguei o ar quente e desmaiei. Senti hipotermia. Acordei com um cara socando o vidro para abrir a janela e saber o que estava acontecendo. Liguei para a minha mãe, ela ficou desesperada.
Era um conhecido seu?
Kléber: Não, era um cara da rua. Foi por acaso. Acho que o cara estava me vendo tirar a neve. Entrei no carro ligado, com farol alto. Liguei tudo para tentar esquentar alguma coisa. O cara me viu fazendo tudo isso e foi saber por que eu não tirei o resto da neve. Nem entendi também o que o cara falava e fui embora.
Apesar de tudo isso, lá você ganhou o apelido de “Gladiador”…
Kléber: Nunca tive problemas para me adaptar com o futebol. Isso é muito bom. Tive problemas de adaptação com o pessoal, discutia e brigava muito nos treinamentos porque o pessoal batia bastante. Não só eu, os brasileiros que tinham lá discutiam muito com os ucranianos.
Em inglês?
Kléber: Não, xingava em português. O tradutor ficava praticamente dentro do campo e a gente falava: “manda chegar devagar, é treino”. Era difícil se adaptar com o pessoal, mas no futebol eu me adaptei muito rápido. Vinha em um momento muito bom. Saí do São Paulo jogando muito bem, vim da seleção como campeão mundial sub-20. Era só dar continuidade e comecei a jogar bem, fazer gol. Logo a torcida se identificou comigo. Depois de uns dois anos começou esse negócio de “Gladiador”, mais pelo meu estilo de jogo e pelo sobrenome (Giacomance). Apesar de eu ter vindo do Brasil, meu nome é italiano, e aí isso começou.
Chegando como campeão mundial sub-20, você era a grande contratação do Dynamo na temporada? Eles pagaram US$ 2,2 milhões para te levar, um valor alto para uma revelação na época…
Kléber: Cheguei lá com moral. A expectativa comigo era grande porque vim do Brasil. Chegaram comigo mais dois atacantes, um da Letônia e um da Bielo-Rússia. O torcedor vai depositar as esperanças no brasileiro, né? O pessoal se identificou comigo e foi legal, porque pude corresponder a tudo isso.
E como é o futebol na Ucrânia? Pode pelo menos se igualar ao russo, que está crescendo nos últimos anos?
Kléber: A Ucrânia é muito fechada ainda, principalmente o Dynamo. É um clube que ainda tem a mentalidade da União Soviética, não deixa entrar treinador estrangeiro, por exemplo. O que já não acontece no Shakhtar (Donetsk), que a comissão tem italiano, romeno, com uma mente mais aberta. A Rússia cresceu porque levou treinadores para lá. Na época que eu cheguei, o Ivo Wortmann estava no Dínamo de Moscou. Eles levam muitos brasileiros, são mais abertos, querem evoluir.
Até a seleção da Rússia tem o holandês Guus Hiddink como treinador agora…
Kléber: E o nosso… [interrompe e corrige-se] a ucraniana, não. Dificilmente entra um treinador estrangeiro lá. Sai um ucraniano e entra outro.
E o Schevchenko, é idolatrado mesmo lá?
Kléber: Ele tem muito moral. Quando foi campeão da Liga dos Campeões, o Milan deixou ele levar a taça até lá, para mostrar para os torcedores do Dynamo. É uma febre, o pessoal gosta muito dele.
Você sempre diz que veio de uma família pobre. Sua infância influencia no seu estilo aguerrido dentro de campo?
Kléber: Levo muito essa vontade de ganhar para dentro de campo e isso vem muito da minha infância. A gente que vem de uma família pobre precisa matar um leão a cada dia. Sempre pensei assim dessa forma, mostrando que queria vencer, tanto que até hoje sou assim. Quando perco, parece que acaba o dia, o final de semana. Depois dessa derrota para o Sport, foram os piores três dias de folga que eu tive porque a gente sabe que tem um time melhor, jogava na nossa casa, luta pelo título, e deixa a vitória escapar dessa forma… Foram meus piores três dias de folga.
Como foi sua infância em Osasco?
Kléber: Como a de muita gente pobre: difícil, a gente passa necessidade. Para treinar, tinha de pegar dois ônibus e acordar cinco da manhã para ir ao Morumbi. Muitas vezes acordava quatro e meia da manhã, dormia dentro do ônibus, era complicado. Mas, graças a Deus, consegui vencer.