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‘RRR’ se descola da realidade com clareza e sinceridade sem iguais

O filme, dirigido por S.S. Rajamouli e produzido na Índia, já está disponível na plataforma de streaming Netflix

FolhaPress

09/08/2022 10h04

O filme, dirigido por S.S. Rajamouli e produzido na Índia, já está disponível na plataforma de streaming Netflix

Foto: Reprodução

De vez em quando o cinema se lembra que nasceu arte popular. Isso pode acontecer na Itália, no Brasil, em Hong Kong, ou na Índia. E é da Índia que chega, distribuído pela Netflix, o filme extremamente original que é “RRR”. Ou “Revolta, Rebelião, Revolução”.

O que exatamente é isso? Épico ou aventura? Musical ou artes marciais? Melodrama ou filme experimental? Ambientalista ou de ação? De certa forma é tudo isso, embora não tudo ao mesmo tempo.

Mas a mistura de gêneros é um componente tão claro da produção quanto o uso constante de recursos contemporâneos como drones, usados a torto e a direito, cortes rápidos e não raro feitos apenas para cortar, efeitos especiais (sobre os quais voltaremos a falar). Tudo isso faz parte da estética hiperbólica adotada por S.S. Rajamouli, o diretor do filme.

Um pouco de conteúdo, então. A base dessa ficção delirante são dois heróis da luta pela independência da Índia, da província de Telangana, no centro-sul do país -se minha ignorância da geografia indiana não está promovendo um amplo deslocamento.

O essencial, no entanto, é que Alluri Sitarama Raju e Komaran Beem são dois líderes rebeldes. O primeiro morreu há cem anos, executado pelos britânicos; o segundo, em 1940. Não existe, ao que parece, registro de que tenham se conhecido.

O filme se interessa bem menos pelos fatos do que pelas lendas que criaram os dois heróis. Aqui, eles podem ser, em dado momento, amigos “irmãos”. Mais adiante, serão inimigos, já que Beem é o guardião da floresta, encarregado de encontrar uma menina sequestrada pelos britânicos, enquanto Raju começa o filme como policial a serviço dos britânicos. O essencial é que são heróis com fôlego de super-heróis, sem, no entanto, avançarem nesse campo -é de vidas lendárias que o filme trata, não de personagens de HQs.

Quem quiser caçar defeitos na produção poderá se divertir. Em dado momento aparecem tigres que, de repente, ficam do tamanho de elefantes, ou quase. Podemos chamar isso de incompetência dos efeitos especiais etc. Mas é possível ver, mais que isso, a importância dada aos animais, já que, para os indianos -os do filme, em todo caso-, homens, animais e natureza partilham o mundo de maneira igualitária. Eles crescem ou diminuem conforme a importância de sua presença em cada momento.

É um aspecto a notar nessa ficção delirante, na qual a horas tantas os rebeldes soltarão uma multidão de animais para enfrentar a guarda britânica durante uma festa promovida pelos colonizadores. Mas não o único. Para quem alegar que em certos momentos a cenografia parece artificial, será fácil responder pedindo que se observe a beleza da combinação de cores. Para quem se queixar da arbitrária velocidade dos dançarinos em uma dada sequência, basta pedir que observe a complexidade da dança.

Foto: Reprodução

O cinema nunca foi fiel à verdade histórica ou à vida real. Ele as reconstrói conforme as conveniências de lugar e de momento. Mas poucos fazem isso com a sinceridade e mesmo a clareza de “RRR”. Basta ver o momento em que duas baquetas voam e caem nas mãos da Raju, que, imediatamente, começa a tocar bateria, substituindo o ritmo ocidental da música por um indiano. Isso é trabalhar o efeito -as baquetas voando em câmera lenta e caindo das mãos de um personagem que até então não participara da sequência- , de tirar da cena seu significado integral.

“RRR” ainda reserva ao espectador surpresas sobre as quais é melhor nada adiantar, mas que fazem o filme soar por vezes como um evento surrealista.

Onde “RRR” talvez seja de fato criticável não é naquilo em que contraria certas convenções do verossímil tal qual aceito pela indústria e espectadores ocidentais, mas justamente nos aspectos em que a imita, como a troca de planos por vezes excessiva e sem parada, característica do tempo de tantos blockbusters. Isso pode até dinamizar cada cena, mas torna o conjunto um tanto monótono, dominado por um andamento que raramente se altera.

Tanto virtudes quanto eventuais defeitos acabam submetidos a constatações que de repente soam como novas, ao menos a mim, que nasci e cresci vendo Gandhi e seu pacifismo serem cantados em prosa e verso, como se uma espécie de independência submissa ao colonialismo fizesse parte da natureza indiana.

No filme, isso parece quimera -basta ver o retrato que “RRR” faz dos britânicos para ter a medida de quanto, até hoje, os indianos (ou parte significativa deles) odeiam os antigos invasores, de quanto a colonização os marcou e de como a libertação ainda hoje é um ideal bastante vivo no país.

Nada a ver com a imagem gentil que filmes britânicos (ou americanos) costumam fazer dos indianos. Talvez este filme explique, aliás, a presença deles no Brics ou mesmo a atitude em face da Otan em recentes acontecimentos de política internacional. Por vezes a ficção e a vida se encaixam bem mais do que pensamos à primeira vista.

RRR: Revolta, Rebelião, Revolução 

Onde: Disponível na Netflix

Classificação: 16 anos

Elenco: N.T. Rama Rao Jr., Ram Charan, Ajay Devgn

Produção: Índia, 2022

Direção: S.S. Rajamouli

Avaliação: Muito bom

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