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Kátia Flávia
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“Gerson, meu menino sem juízo”: conselheira tutelar revela a história que as redes não contaram sobre jovem morto por leoa na Bica

A conselheira tutelar Verônica Oliveira, que acompanhou Gerson de Melo Machado desde os 10 anos, relata o histórico de abandono, doença mental na família e falhas da rede de proteção antes da morte trágica do jovem de 19 anos, atacado por uma leoa no zoológico de João Pessoa.

Kátia Flávia

01/12/2025 10h00

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Verônica e Gerson. (Foto: reprodução/redes sociais)

O Brasil viu o vídeo, fez piada, julgou, recortou em stories. Mas quem viu o menino por trás da tragédia foi a conselheira tutelar Verônica Oliveira, que decidiu romper o silêncio depois da morte de Gerson de Melo Machado, 19 anos, conhecido como “Vaquerinho”, atacado por uma leoa no Parque Arruda Câmara, a Bica, em João Pessoa.

Na manhã de domingo, Gerson escalou estruturas, ultrapassou grades de proteção e entrou no recinto do animal. A leoa avançou, ele não resistiu. O zoológico foi fechado, a leoa ficou sob observação, e a cidade mergulhou num misto de choque, curiosidade e julgamento fácil.

Enquanto a internet carimbava o rótulo de “criminoso” e lembrava as 16 prisões anteriores do jovem, a conselheira veio a público para lembrar de outra ficha: a de violações de direitos desde a infância.

No texto que viralizou, Verônica começa chamando o rapaz de “meu menino sem juízo” e relembra às vezes em que ele, ainda adolescente, dizia na sala do Conselho Tutelar que ia “pegar um avião pra ir pra um safári na África cuidar dos leões”. Não era bravata de rede social. Era um delírio repetido, um sonho estranho de escape que ela viu de perto.

Teve dia em que quase virou tragédia: Gerson cortou a cerca do aeroporto, entrou na área de pouso de um avião da Gol e chegou perto do trem de pouso antes de ser interceptado. O aeroporto ligou para o Conselho, e ela agradeceu por as câmeras terem visto o que estava acontecendo “antes que uma desgraça acontecesse”.

Anos depois, o menino que queria ir pra África “cuidar de leões” morreu justamente dentro do recinto de uma leoa. É o tipo de coincidência que nem a Kátia Flávia mais dramática consegue digerir sem o rímel borrar.

Verônica conta que conheceu Gerson quando ele tinha 10 anos. Ele foi encontrado pela Polícia Rodoviária Federal à margem de uma rodovia e entregue ao Conselho Tutelar. A partir dali, a rede de proteção passou a acionar a conselheira sempre que algo acontecia com o garoto. 

Nas palavras dela, Gerson era uma criança que já tinha sofrido “todo tipo de violação de direito”. Filho de uma mãe com esquizofrenia, com avós também comprometidos na saúde mental, ele acabou destituído do poder familiar. Os quatro irmãos foram adotados. Ele, não.

Em um trecho duro do relato, Verônica lembra que a própria instituição de acolhimento teria dito que “ninguém iria querer alguém como ele”. A frase é um soco no estômago de qualquer pessoa minimamente decente e é aí que a minha indignação sobe.

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Conselheira tutelar conta história de Gerson. (Foto: reprodução/redes sociais)

Gerson cresceu em acolhimento institucional, com histórico de transtornos de comportamento, crises psiquiátricas e acompanhamento pelo CAPS. Na adolescência, veio a sucessão de conflitos com a lei: furtos, infrações, prisões. Na rua, virou “Vaquerinho”, personagem falado em programas policiais e tratado como caso perdido.

Para Verônica, porém, a imagem é outra. Em entrevista, ela disse que nunca conseguiu enxergar o jovem como as redes sociais desenhavam, mas sim como a criança que um dia foi retirada da mãe, impedida de ser adotada e empurrada de instituição em instituição.

O ponto de dor dela é claro:
– Gerson queria apenas voltar para a mãe, que não tinha qualquer condição de cuidado. A avó também tinha problemas mentais. A sociedade não conhecia essa história e preferiu jogar o menino na jaula dos leões – desabafa, em referência direta à forma como o caso foi tratado nas redes.

A tragédia na Bica

No domingo da morte, Gerson não apareceu “do nada” na Bica. Ele já era conhecido pela rede de proteção, pela polícia, pelos serviços de saúde mental. Um jovem de 19 anos, com histórico de abandono, transtornos psiquiátricos e uma vida inteira em vulnerabilidade extrema, conseguiu escalar estruturas de segurança, ultrapassar grades e chegar ao recinto da leoa. Poucos minutos depois, estava morto.

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Leoa que matou o jovem em parque na Paraíba. (Foto: reprodução/redes sociais)

A Prefeitura informou que o caso está sendo apurado e que o parque segue normas técnicas de segurança, mas a tragédia expôs uma pergunta que ninguém gosta de responder: quem falhou com esse menino antes dele chegar à jaula?

Menos julgamento, mais responsabilidade

Entre uma lacrada e outra na internet, o que o relato de Verônica joga na nossa cara é que Gerson era, antes de tudo, um produto de sucessivas omissões. Ele era uma criança em sofrimento, não o personagem caricato que viralizou, resume a conselheira.

A coluna, aqui, não está a serviço de absolver crimes nem de demonizar quem se assusta com as imagens. Está a serviço de lembrar que nenhuma tragédia nasce na hora do vídeo. Ela é construída ao longo de anos em que família, Estado e sociedade falham juntos.

Gerson não era só o rapaz que entrou na jaula da leoa.
Era o menino encontrado na BR.
O menino que queria voltar para uma mãe doente.
O menino que sonhava com leões porque talvez nunca tenha sido tratado como gente.

E é por isso que, hoje, diante da fala de Verônica Oliveira, não cabe só choque. Cabe silêncio, responsabilidade e um incômodo enorme: quantos outros “meninos sem juízo” estão por aí, prontos para virar apenas mais um vídeo de tragédia no feed?

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