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Celebridades

Poze, Rennan, Bokão: como Justiça tratou MCs acusados de apologia ao crime

A reportagem levantou argumentos apresentados por juízes, acusadores e defesas em ações de grande repercussão pública contra

Redação Jornal de Brasília

30/07/2025 9h52

A decisão da validade da prisão temporária foi confirmada na audiência de custódia do cantor.

SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS)

Há mais de duas décadas, as expressões “apologia ao crime” e “associação ao tráfico” aparecem em acusações de repercussão nacional contra funkeiros.

Um dos episódios mais recentes, a prisão de MC Poze do Rodo, reacendeu o debate sobre os limites da liberdade de expressão artística, levantando questionamentos sobre como autoridades e o Judiciário brasileiro tratam esses casos.

LETRAS E FESTAS EM ‘REDUTOS DO TRÁFICO’ INCRIMINAM MCS

Funkeiros famosos são acusados de apologia ao crime por letras e suposta ligação com o crime organizado. A reportagem levantou argumentos apresentados por juízes, acusadores e defesas em ações de grande repercussão pública contra MCs e DJs, como Poze do Rodo, MC Bokão e Rennan da Penha.

Autoridades veem shows em redutos do tráfico como indícios de associação. Nas ações, a acusação afirma que os artistas promoveram festas em regiões ocupadas por traficantes, com apresentações que exaltam e beneficiam facções. Foi o que ocorreu por exemplo no julgamento que resultou nas prisões de Rennan da Penha, em 2019, e de Poze do Rodo, em maio deste ano.

Especialistas, no entanto, veem “proibidões” como manifestação artística. Segundo eles, não há ilegalidade em composições musicais que citem situações ligadas à criminalidade, tema comum em letras desse subgênero de funk.

MC BOKÃO CONDENADO POR FUNK SOBRE ‘NOVO CANGAÇO’

MC foi condenado por apologia ao crime após lançamento de funk sobre o “novo cangaço”. Em junho, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) condenou em segunda instância Erick Rodrigues de Souza, o MC Bokão, por uma música sobre a ação de uma quadrilha que invadiu Botucatu (SP) e roubou mais de R$ 2 milhões de agências bancárias e comércios, em 2020.

“[trecho retirado de um programa policial] Foram momentos de desespero, foram momentos de terror, uma verdadeira guerra aqui em Botucatu. (…)[voz do funkeiro] Conta vantagem de um milhão e algumas armas apreendidas da nossa quadrilha. (…) É o criminoso mais psico de São Paulo/ Roubando banco em vários estados / E ó, o destino foi Botucatu”, diz trecho de “Assalto em Botucatu”, de MC Bokão.

O que diz a acusação. Para o MP-SP, o funk de MC Bokão “enaltece” o crime e faz “apologia gravíssima” ao mega-assalto. Diante do tribunal, o promotor afirmou que o videoclipe da música havia sido visualizado por quase 12 mil pessoas no mesmo dia em que foi lançado, “demonstrando o potencial virulento de tão nefasta conduta”.

O que diz a defesa. A advogada do artista, Juliana Spadaro, afirmou que Erick não tinha qualquer relação com os crimes e que produziu apenas uma obra ficcional em que representa um personagem. E alegou: “Não é de hoje que determinadas manifestações artísticas e culturais sofrem a repressão de agentes do Estado”.

O que decidiu a Justiça. Os desembargadores condenaram o cantor a três meses de prisão em regime aberto —pena substituída por multas e uma indenização de R$ 15 mil por danos morais. Para o desembargador José Roberto Nogueira Nascimento, relator do processo, a música de MC Bokão “exalta a ação criminosa de forma inequívoca, (…) o que ultrapassa o caráter jornalístico de tal composição”.

RENNAN DA PENHA ABSOLVIDO

DJ Rennan da Penha foi absolvido pelo STJ da acusação de associação ao tráfico em 2023. O processo tramitava desde 2015. Preso em abril de 2019, Rennan foi condenado pela Justiça do Rio a seis anos e oito meses de prisão em regime fechado. Seis meses depois, porém, foi solto, após uma decisão do STF barrar prisões em segunda instância. Desde então, ele aguardava em liberdade, até sua absolvição pelo STJ.

O que diz a acusação. O Ministério Público Federal acusou Rennan de atuar como “olheiro” de traficantes e produzir músicas “enaltecendo” o tráfico, a partir de relatos de uma testemunha, que afirmou que o artista era conhecido como o “DJ dos bandidos”. O MPF também apresentou publicações de Rennan nas redes sociais, nas quais ele informava sobre a presença do “caveirão” da polícia na comunidade.

O que diz a defesa. Segundo o IDPN (Instituto de Defesa da População Negra), o processo estaria baseado “em uma frágil investigação” e em relatos não confirmados com provas.

“Renan fora denunciado por associação ao tráfico de drogas por, supostamente, atuar como olheiro (…) o que, no dia a dia de uma favela, é comum e se faz necessário para a proteção dos seus amigos e familiares”, disse a defesa de Rennan da Penha, em pedido de habeas corpus em 2023.

O que decidiu a Justiça. O STJ foi contrário à decisão da Justiça do Rio e absolveu Rennan. Em decisão mais recente, o ministro Rogerio Schietti Cruz alegou, entre outras coisas, que policiais do Complexo da Penha disseram não saber do suposto envolvimento do músico com o tráfico, e que a testemunha ouvida pela polícia no início recuou das declarações diante de Justiça.

MC POZE DO RODO ACUSADO DE ‘DISSEMINAR NARCOCULTURA’

MC foi acusado de apologia ao crime e de ter ligações com o Comando Vermelho. Marlon Brendon, o MC Poze do Rodo, 26, foi preso temporariamente no fim de maio. Na ocasião, a Polícia Civil divulgou um vídeo em que afirmava combater a “narcocultura”. Foi a primeira vez em que o termo, usado na América Latina para definir a cultura patrocinada pelo tráfico de drogas, foi usado em acusações que miram artistas no Brasil.

Processo corre sob segredo de Justiça. Com base em declarações públicas de autoridades, a reportagem reuniu trechos do que afirmaram acusação, defesa e juiz do caso.

O que diz a acusação. À época da prisão de Poze, a Polícia Civil disse, em nota, que o artista compunha músicas com “clara apologia” ao tráfico, e que realizava shows “exclusivamente em áreas dominadas pelo CV, com a presença ostensiva de traficantes armados”. Sua prisão seria um “recado” para “todos aqueles que romantizam e ajudam a disseminar a narcocultura”. Em entrevista ao UOL, o governador do Rio Cláudio Castro (PL) repetiu o uso do termo.

O que diz a defesa. No pedido de habeas corpus, a defesa argumentou que sua prisão foi ilegal e desproporcional, uma ação “seletiva” que “evidencia a perseguição à arte periférica”.

O que decidiu a Justiça. Quatro dias após a prisão de Poze, o TJRJ concedeu habeas corpus para soltar o artista. Segundo o desembargador Peterson Barroso, a prisão era excessiva. “O material arrecadado na busca e apreensão parece ser suficiente para o prosseguimento das investigações, (…) valendo registrar que não há comprovação, por ora, de que ele estivesse com armamento, drogas ou algo ilícito em seu poder.”

Desembargador ressaltou que havia “indícios que comprometem o procedimento regular da polícia”. Na decisão, ele relembrou que o funkeiro foi algemado e tratado “de forma desproposital, com ampla exposição midiática”.

‘USO ELEITOREIRO’: O QUE DIZEM ESPECIALISTAS

Especialista vê prisões de funkeiros sendo usadas como estratégia política. “[Falar em narcocultura] ativa o imaginário, muito consolidado, falacioso e precário de ‘polícia combatendo bandido’. Todos os políticos que vão concorrer estão de olho na mesma plataforma repressiva para a segurança púbica”, diz o cientista político André Rodrigues, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Política e Violência da UFF (Universidade Federal Fluminense),

Pesquisadora avalia que utilização do termo “narcocultura” por autoridades tem dupla estratégia. Segundo Maria Isabel Couto, diretora de dados e transparência do Instituto Fogo Cruzado, a intenção das autoridades seria “criar uma cortina de fumaça” para a inexistência de políticas de segurança pública e ignorar as raízes dos problemas. “Na ausência de um plano eficaz para combater a criminalidade, partem para a política de nomear inimigos”, avalia.

Pesquisador ressalta caráter ficcional de composições. O músico Danilo Cymrot, autor do livro “O funk na batida: baile, rua e parlamento” e doutor em direito, aponta a existência de uma “zona cinzenta” no julgamento de obras artísticas, uma vez que o eu lírico, ou seja, a voz que se manifesta nas obras, “muitas vezes é de um personagem representado nas canções”.

MCs são acusados de fazer parte da engrenagem do tráfico sem provas concretas, diz Cymrot. “Muitos que respondem por apologia ao crime (pena de três a seis meses de prisão, ou multa) são também indiciados por associação ao tráfico de drogas, com pena maior”.

“Da mesma forma que um ator que interpreta um vilão, na vida real, não necessariamente concorda com o que aquele personagem faz, quando um MC canta em primeira pessoa como se fosse um traficante não necessariamente ele é um, ainda que conheça de perto esse ambiente e conviva com pessoas que são”, afirma Cymrot.

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