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Coluna D

Redes sociais: a ilusão da vida perfeita

Arquivo Geral

13/03/2018 16h16

Atualizada 08/08/2018 12h06

No último domingo estive no Farol Santander para visitar a exposição “Saramago – os pontos e a vista”. São dois andares de mostra, bastante tranquilos de ser percorridos. Os recursos audiovisuais ajudam bastante a se envolver na narrativa pretendida pelo curador Marcello Dantas. Li atentamente tudo o que consegui, absorvi o que foi possível, me emocionei. E fiquei pensando sobre um trecho de uma entrevista que Pilar (viúva de Saramago) deu ao Miguel Gonçalves Mendes:

“E na altura, quando Pilar se apaixonou pelo José, achava que era a sua alma gêmea, ou era uma coisa totalmente diferente”?

“Nunca jamais na vida me ocorreria pensar que é minha alma gêmea. Tinha uma alma da qual eu gostava, simplesmente. Era uma pessoa de quem gostava, e achei, à medida que ia conhecendo o ser humano, que era a pessoa que estava nos livros, e que havia uma verdade, uma autenticidade humana nos livros, e essa autenticidade também a encontrei no ser humano.  Porque há escritores que se esvaziam tanto nos livros que depois são uns fantoches. No caso do Saramago, não. O ser humano corresponde à obra”.

Esse processo de escrever não é fácil, porque como já disse anteriormente, leva-se tempo para formular pensamentos. E, sim, Pilar tem toda razão: escrever é esvaziar-se. Hoje escrevo porque levei certo tempo até me encher de novo. Agora, estou transbordando e preciso colocar aqui, em algumas linhas, meus pensamentos. Não tenho a pretensão jamais de ser como o Saramago, mas nos meus textos espero, sim, me mostrar humana. Pelo menos, há um ingrediente necessário para atingir meu objetivo: angústia.

De julho a março passei por três livros que mencionaram Jeremy Bentham, um dos pais do utilitarismo. Resumidamente, no utilitarismo, o prazer ou bem-estar deve ser o mais intenso possível, o mais fecundo possível (gerar formas diferentes de prazer a partir de um primeiro), o mais certeiro possível na sua missão de eliminar uma forma específica de mal-estar, puro o bastante para que não crie efeitos colaterais indesejáveis, capaz de durar o máximo de tempo possível e produzir seu efeito o mais rapidamente no tempo.

 

Por essa lógica, não há espaço para o sofrimento. O bem-estar deve ser intenso, duradouro, puro (sem efeitos causadores de impurezas incontroláveis), fecundo, seguro, imediato. Basta ver como as pessoas se comportam nas redes sociais para perceber que o utilitarismo está impregnado em nossas vidas. E a partir de várias reflexões a partir das minhas leituras (indigestas porque me vi nelas), decidi usar as redes de forma bastante moderada. Posto amenidades (e cada vez menos).¹

A obra “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, mais do que uma crítica ao utilitarismo, é uma crítica aos nossos tempos. Ele narra a chamada tragédia da liberdade e toca no fato de que uma sociedade organizada com o propósito de realizar a busca sistêmica e sistemática do prazer e do bem-estar terá necessariamente a liberdade como sua principal baixa. Isso porque homens utilitários aceitam facilmente a escravidão, se ela lhes garantir bem-estar “absoluto”.

Isso me lembra a fala de Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai e atualmente senador, no documentário Human. “Inventamos uma montanha de consumo supérfluo, e é preciso jogar fora e viver comprando e jogando fora. E o que estamos gastando é tempo de vida. Porque quando eu compro algo, ou você, não compramos com dinheiro, compramos com o tempo de vida que tivemos de gastar para ter esse dinheiro. Mas com esta diferença: a única coisa que não se pode comprar é a vida. A vida se gasta. E é miserável gastar a vida para perder liberdade”.

Somos todos escravos. Queremos consumir e consumir. Compramos, estampamos nas redes sociais o quão bem-sucedidos e felizes somos, quando, na verdade, queremos a todo custo disfarçar nosso vazio existencial. Para conseguir comprar, trabalhamos exaustivamente, consumimos tempo de vida e o planeta. Estamos todos nos matando.

Queremos mostrar que estamos bem, por meio de roupas caras, viagens internacionais, carro do ano, idas a restaurantes luxuosos. Queremos ser felizes (o que é legítimo), mas essa busca utilitária do bem-estar – mesmo que esta destrua outras dimensões de significado da vida – nos torna escravos. A vida não encontra significado apenas no bem-estar, mas também no sofrimento que, muitas vezes, molda o nosso caráter.

Podemos até optar por apenas “uma forma” de vida, aquela em que a dor será higienizada, mesmo que à custa da recusa do amadurecimento. Mas deixaremos de ser humanos, porque o conflito, a contradição, a angústia são sinais de “humanização”. ² O resultado disso já está aí. Abra o Facebook, Instagram e os vários stories da vida e verá muitas pessoas “felizes”, escondidas por detrás de sorrisos falsos. Um verdadeiro palco com diversos atores nos mais variados papeis.

Atua-se na vida que se gostaria de ter, nos relacionamentos idealizados, nas amizades eternas e plenamente sinérgicas. Atua-se no dinheiro sobrando, nas festas e viagens absurdamente divertidas, nas crises de riso intermináveis, nos corpos prontos para ser espontaneamente clicados. Atua-se nas declarações de amor, numa tentativa de autoafirmação e de convencimento a si mesmo. ³ Atua-se no discurso que tem pouca ou nenhuma conexão com as atitudes. E, por isso, não se sustenta. Atua-se no excesso de valorização de corpos esculturais que tentam maquiar o oco interno.

Tudo isso é absurdamente perecível. Por trás da vida que tanto exibimos no mundo virtual, existe um mundo de vida aqui dentro que precisa de cuidado real… “Falsos valores e palavras ilusórias: são estes os piores monstros para os mortais; longamente e à espera, dorme neles a fatalidade”, já dizia Friedrich Nietzsche.

Finalizando meu desabafo, tenho descoberto o quanto pode ser maravilhoso exercer o meu direito ao anonimato, ainda que tudo o que você faça hoje deixe um rastro digital. Dentro do que é possível, venho me desconectando mais das redes, vivendo uma vida que me parece ser mais real. E tenho me rebelado contra o pan-óptico ou a casa de inspeção Jeremy Bentham que se tornou as nossas vidas. Com uma diferença primordial: nós não só deixamos como queremos ser observados.

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