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Brasília

Triste retrato de nossos tempos

No segundo capítulo da série, a história de Kacyla, mentora da transformação que levou ao crime

Olavo David Neto

16/07/2019 6h00

Atualizada 25/11/2020 15h49

No segundo capítulo da série, a história de Kacyla, mentora da transformação que levou ao crime

Em diversos aspectos, o caso Rhuan é a mais trágica representação dos pesados conflitos que marcam os tempos em que vivemos. O violento confronto – que de um lado coloca o fundamentalismo religioso, a violência de gênero, a homofobia e outras formas de intolerância e do outro torna vítimas justamente os mais frágeis dos envolvidos nessa cadeia – produziu-se internamente na cabeça de duas mulheres, Rosana e Kacyla.

Dizer simplesmente que as duas são monstros é uma simplificação grosseira inaceitável. Desde o início, o Jornal de Brasília quis compreender as motivações por trás de tamanha barbaridade.

Assim, fomos a Rio Branco, cidade de origem de todos os personagens envolvidos nesse drama brasileiro. Para mergulhar no passado delas, nas suas histórias, e produzir esta série especial.

No primeiro capítulo, mostramos a impressionante transformação de Rosana, de mãe amorosa a cruel assassina. Hoje, nosso foco volta-se para Kacyla.

A apuração da reportagem demonstra papéis específicos das duas mulheres. Kacyla parece ser a mentora da transformação que ocorreu com ambas. E Rosana o instrumento pelo qual concretizou-se a maldade.

Ex-pastora, é ela quem induz Rosana à mudança, pregando seu afastamento do filho Rhuan e fundando as bases da religião que pretendiam fundar. Uma religião na qual o sentimento homoafetivo das duas não fosse visto como pecado. Mas que incorporava também aspectos de certo Deus vingativo do Velho Testamento.

Por um desvio distorcido da mente de ambas, o menino Rhuan parece virar o desaguadouro de todos os ódios que as duas guardavam represado.

Brincadeira de Kacyla era benzer crianças

Olavo David Neto, enviado especial a Rio Branco (Ac)
[email protected]

Desde muito pequena, Kacyla Priscila Santiago Damasceno via-se como líder religiosa. Ao invés de correr ou pular na rua, sua brincadeira preferida era reunir a meninada da vizinhança para benzer a todos, tentando curá-los de suas chagas. “Ela punha a mão na cabeça deles e fechava os olhinhos com força, rezando”, comenta dona Raimunda.

Fotos: Arquivo pessoal

Kacyla veio ao mundo no dia 22 de agosto de 1990 . Com apenas 11 meses, conheceu o abandono. A mãe, envolvida num assalto, deixou a menina ainda bebê, que acabou resgatada pela avó em Sena Madureira, a 145 km de Rio Branco. “Cheguei e ela estava em cima de um colchão todo encharcado de xixi”, comenta Bizita, como é conhecida dona Raimunda Lima, hoje com 73 anos.

O carinho só veio para Kacyla mais tarde. Xodó dos tios, a quem chamava de irmãos, Kacyla cresceu, então, como a menina dos olhos da nova família. O carinho era tanto que, além de Bizita, seu avô, conhecido como Francisco “Cobra Verde”, e a filha mais velha do casal dividiam a guarda da criança. Com três lares, ela podia escolher onde ficar. “Quando a gente dava bronca aqui, ela ia pra casa do avô. Quando ele ‘dava dura’, ela ia pra casa da Silvana”, relembra a avó e mãe de criação.

Despertar religioso

Kacyla dividia-se entre brincadeiras no quintal de casa e as missas católicas na paróquia do bairro na companhia de Bizita. Quando a tia Silvana converteu-se ao protestantismo, migrou junto para os cultos evangélicos na Igreja das Graças. Nesta época, passou a ler a Bíblia incessantemente. Os versículos que mais lhe tocavam iam para a ponta do lápis e, depois, ela colava nas paredes da casa. “Aqui, vó, pra quando a senhora precisar ler”, comentava.

Mas a leitura e a escrita não se restringiam aos textos religiosos. Gostava de romances. Tinha talento para criar histórias, e tinha como passatempo escrever contos nas folhas do caderno, ao invés de usá-los para as aulas. Kacyla frequentou o Colégio Acreano, e lá se formou no Ensino Fundamental sem qualquer destaque. A vida escolar não era seu forte, e ela preferia se dedicar às histórias inventadas na própria cabeça à versão dos livros didáticos. Lia e escrevia romances. Nesse período, se apaixonou.

Rodrigo Oliveira cresceu próximo à família e olhava Kacyla de longe, cada vez mais encantado pela jovem. Era flagrado observando a menina por dona Raimunda. Com o tempo, não se conteve e venceu a vergonha: “Eu vou casar com ela, Bizita”, disse o rapaz. E a matriarca não se opunha ao relacionamento. “Eu via com bons olhos, sim”, ri-se a avó. “ Os dois eram virgens quando casaram”, comenta, orgulhosa. Começaram a namorar aos 19 anos, e um ano depois já estavam casados. Dentro da igreja que frequenta há quase uma década, ele lembra que o relacionamento do casal tinha um forte viés religioso. “Todas as noites líamos a Bíblia antes de dormir”, recorda Rodrigo.

Algo, porém, aconteceu no relacionamento não muito depois. Após o nascimento da filha, o casal se separou – por decisão dele. “Ela se tornou bipolar”, relembra Rodrigo. Com o fim do casamento, Kacyla voltou à casa do avó-mãe. Solteira, tinha uma vontade nunca antes vista de frequentar baladas, conforme conta Bizita. “Às vezes ela queria sair e eu falava que não, porque a filha precisava dela. Ela sentava no sofá e ficava muda, como uma estátua”, relata dona Raimunda.

Quando decidiu deixar a casa da família, Kacyla convidou a amiga Liberdade Nascimento para dividirem um apartamento. O imóvel era no bairro do Santo Afonso, e Kacyla passou a frequentar a Igreja Renovada. Foi quando reencontrou Rosana, velha colega de classe. Também separada e com filho, as duas iniciaram um romance, mas não assumiam o relacionamento amoroso que aflorou.

Com a convivência, veio a doutrinação e as sugestões de Kacyla para que Rosana perdesse o apego pelo filho Rhuan. Logo, Liberdade foi expulsa da casa. Tinha, assim, início uma relação de amor e fanatismo, que culminaria no bárbaro crime cometido no dia 31 de maio de 2019, em Brasília.

Confira todas as reportagens da série

Caso Rhuan – parte 1 – Rosana: cinco anos e meio separam mãe de monstro

Caso Rhuan – parte 3 – Por que a criança amada virou alvo de ódio?

Caso Rhuan – parte 4 – Jornada de fuga e metamorfose

Caso Rhuan – parte 5 – O martírio final de Rhuan

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