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Brasília

Especial – Caso Rhuan – Na última reportagem da série, o martírio final de Rhuan

Seguirá para sempre a pergunta: por quê?

Olavo David Neto

19/07/2019 6h01

Atualizada 25/11/2020 15h51

Os agentes aproveitaram o portão aberto para adentrar o lote. Com lanternas, iluminaram o corredor que levava à última das três casas, e de cara avistaram duas mulheres, uma das quais facilmente reconhecida pela descrição das testemunhas: cabelos loiros e aparentemente albina. Poucos minutos antes, Guilherme Sousa Melo, delegado-adjunto da 26ª Delegacia de Polícia, em Samambaia Norte, ouvira de alguns jovens que uma mala encharcada de sangue e com carnes que pareciam humanas fora encontrada num bueiro, e uma pessoa de roupas pretas deixara a bagagem ali. O ímpeto de entrar se transformou em chamado para abrir a porta, atendido por uma das mulheres. Armas em punho, os policiais ordenaram que as duas saíssem da residência e se deitassem no chão, no que também foram obedecidos. Ao perguntar sobre o corpo, a resposta da que se identificou como Ana: “É do meu filho. Eu o matei”.

Assim terminava a macabra saga que se encaminhava para o quinto ano. Depois do que só parecia uma fuga ao estilo Bonnie & Clyde, com furtos e momentos quase cinematográficos do casal, executou-se ao final algo mais próximo de um filme de terror. Na madrugada que encerrou maio e inaugurou junho de 2019, as mulheres foram presas numa casa que planejavam deixar em breve, abandonando num bueiro, à rua, os restos mortais do que antes fora o brincalhão e amado Rhuan Maycon. Na última reportagem do Especial – Caso Rhuan, o cruel ponto final da vida do garoto é contado em detalhes.

Uma carta da mãe de Rosana é o epílogo. Um doloroso retorno ao amor de uma mãe. A dolorosa – embora, talvez, otimista – constatação de que, mesmo diante do quadro mais horrível, o sentimento persiste.

Rosana dizia à vizinha que filho era o capeta

Rosana Auri da Silva Candido e Kacyla Priscila Santiago Damasceno Pessoa chegaram ao Distrito Federal em 2018, inicialmente em Ceilândia. Já em Samambaia, fixaram residência na casa 21 do Conjunto 03 da Quadra Residencial 619. Junto com Rhuan Maycon da Silva Castro, filho de Rosana, e G., filha de Kacyla, as duas adultas estavam em fuga há quase cinco anos, desde que, em 2015, saíram da Casa Abrigo Mãe da Mata, na capital acreana, e sumiram do mapa. Instigado por familiares a cortar a pensão da filha para conhecer o paradeiro das mulheres, Rodrigo Oliveira, ex-marido de Kacyla, recorreu à Justiça em três oportunidades. Somente em 29 de maio deste ano, porém, o benefício foi suspenso. “Elas viviam daquele dinheiro, e isso se somou à vontade de se livrar do Rhuan”, comentou o delegado Guilherme Sousa Melo.

A criança tornara-se um estorvo para o casal. “Ele batia na gente e se masturbava o tempo todo”, alegou Kacyla, depois de cometido o crime. Segundo Rosana, o garoto trazia memórias do pai, Maycon Douglas, seu ex-namorado, e a morte do filho “cortaria qualquer vínculo com aquela família”, nas mãos da qual, ainda de acordo com ela, sofreu muito. Pouco mais de um ano antes, o menino fora emasculado. Em Goiás, fora dopado com doses de dipirona e seu membro foi extraído de forma improvisada. Kacyla se encarregou da emasculação e da sutura caseira na pélvis do garoto. A dor era uma constante, pois, para urinar, Rhuan precisava que a bexiga estivesse cheia ao máximo. Às autoridades, Rosana alegou que “ele pediu para cortar, porque queria ser uma menina”.

Sandra da Silva, moradora da QR 113 da mesma RA, recebeu Rosana, G. e Rhuan em sua residência por duas vezes em dezembro de 2018 e uma em janeiro de 2019. Segundo ela, em depoimento à polícia, as crianças – apresentadas como gêmeas – “aparentavam sempre estar com fome”. Ao oferecer comida, o menino aceitou, mas Rosana – “com olhar de ódio” – repreendeu o filho: “Você tem de saber esperar a comida. Não vai comer nem biscoito e nem bolo”. Sandra relata que o menino tinha muito medo da mãe. As tentativas da vizinha em puxar assunto com Rhuan eram respondidas apenas por Rosana, e, quando Sandra sugeriu que ele fosse brincar, a genitora não permitiu. “Ele não pode, porque ele é o capeta. Vai quebrar tudo”, disse aquela que, cinco anos antes, chamava Rhuan de “meu amor”. A menina G., por outro lado, foi brincar com as bonecas e se serviu de bolo, biscoito e suco. Declarando-se pastora, Rosana orou para Sandra e seu esposo, mostrando grande conhecimento da Bíblia. Na refeição oferecida pela mulher, Rosana serviu a si, colocou uma pequena porção para o filho, e G. colocou a própria comida no prato.

Quando terminou, o garoto perguntou se poderia repetir o prato. “Eu não ensinei você a comer muito”, exasperou-se Rosana. Enquanto isso, G. serviu-se mais duas vezes. Rosana queixou-se de que não podia trabalhar. Foi quando Sandra e o marido falaram que Rhuan poderia morar com eles. A resposta foi o silêncio.

velório de Rhuan Maycon, o menino que foi esquartejado pela mãe, em Samambaia foto: Arquivo pessoal

“Dei uma facada no peito”

Na noite de 31 de maio, Rosana e Kacyla aguardavam, tensas, o fim da novela das nove. Aquele era o dia em que colocariam em prática os planos feitos há um mês. O menino dormia num dos quartos, e, após desligarem a TV, elas foram até ele, ainda em dúvida. Rosana empunhava uma faca comprada pela manhã por R$ 14,99. Na sala, em cujas paredes frases do Velho Testamento estavam fixadas, a decisão se anunciou com um leve grito do garoto. De acordo com laudo do Instituto Médico-Legal (IML), o aço adentrou o pulmão pela costas, tomando-lhe o ar. Quando caiu ao chão, de rosto para cima, ele viu que era a própria mãe quem o afligia. À polícia, Rosana declarou ter dado “mais duas” facadas no filho. “Mas posso ter dado outras”, disse, lembrando que estava “fora de si”. Ao todo, foram 12. As confissões de Rosana, porém, mostram outra versão. “Dei uma facada no peito, ele levantou e eu esfaqueei as costas”, disse Rosana, em depoimento. Kacyla, então, segurou o menino pelos cabelos longos e a mãe atravessou o pescoço de quem outrora chamara de “presente de Deus” com outro golpe, separando o crânio do tórax. E aí – não antes – Rhuan faleceu. De acordo com laudo do IML, o menino teria sido degolado ainda vivo.

Com a ajuda de um martelo e seguindo as orientações de Kacyla, Rosana cortou os braços e as pernas. As duas removeram a pele do rosto “com precisão que me fez considerar ajuda de profissionais”, confessa o delegado. Enquanto Kacyla acendia a churrasqueira, Rosana abriu a barriga do filho e retirou-lhe as vísceras. O tórax, os braços, as pernas e os órgãos internos foram assados, “para amolecer”, segundo elas, e depois serem jogadas no vaso sanitário. Ao ver que faltavam partes do corpo, os policiais questionaram se Rosana havia comido a carne do próprio filho. “Não, mas achei o cheiro agradável”, teria declarado Rosana a um dos agentes no local do crime.

Após esquartejar o menino, as duas alocaram seus membros em uma mala vermelha e duas mochilas escolares de cor rosa. Após trocarem de roupa, Rosana saiu com a bagagem vermelha para depositá-la no bueiro. Ao chegar ao local, Rosana sentou-se no meio-fio. Guilherme Gonçalves, uma das testemunhas, passou pelo local, mas não deu atenção à cena. Na volta, o jovem sentiu falta da bagagem. “Joguei aqui no bueiro. Tinham só umas roupas velhas”, disse ela. Guilherme brincou que “achava que tinha um bebê”, ao que a mulher respondeu não ter marido ou filhos. Rosana voltou à casa atordoada. Kacyla percebeu. “Você quer se matar?”, perguntou, tensa. A companheira não respondeu. “Você quer matar a gente?”, voltou a questionar, incluindo a filha na pergunta. Rosana também não respondeu. Quase simultaneamente, Guilherme e alguns amigos voltaram ao bueiro onde Rosana depositara a mala, e a curiosidade do grupo fez um deles, Luiz Gustavo, tentar puxar para cima. De acordo com ele, “um líquido vermelho desceu.” A mala caiu e se abriu. O conteúdo fez o grupo chamar a polícia.

Rosana Auri da Silva (MÃE ASSASSINA) FOTO : PCDF

A alegria que não veio com o fim das buscas

Rodrigo Oliveira estava de plantão na manhã de sábado e o celular tocou. Recebeu assim a notícia de que Rhuan fora morto pela ex-esposa e por Rosana, mas que G. estava bem, num abrigo do Conselho Tutelar. Sem liberação, o homem só pôde se dirigir ao pequeno aeroporto de Rio Branco no domingo, 2 de junho. Ao chegar a Brasília, quis levar a filha de volta de imediato, mas foi demovido da ideia pelos psicólogos que acompanhavam a menina. “Disseram que ela sofreu uma alienação parental muito grande. Ela dizia que eu batia na mãe dela, a Kacyla ficou cinco anos falando mal de mim para ela”, relata o homem, que só voltou com a filha a Rio Branco 15 dias após a morte de Rhuan.

Triste reencontro

Pela dificuldade em remontar os restos mortais do menino, o IML só liberaria o corpo para o traslado Distrito Federal-Acre em dez dias. Com ajuda do governo estadual, Francisco das Chagas, avô paterno de Rhuan, recebeu o neto em Rio Branco já na madrugada de terça-feira, 4 de junho. A curiosidade de quem não via o rosto da criança há quase meia década o fez abrir a tampa da urna funerária. “Até hoje, eu tenho pesadelo com aquela imagem. Todo preto, queimado, tudo cortado. O rapaz da funerária, que trabalha há 18 anos com isso, passou mal e teve que ir pra casa”, lembra Chaguinha. Na sede da empresa Morada da Paz, responsável por receber os restos mortais do garoto, o homem identificado apenas como Divino confirma o fato, mas não quis gravar entrevistas.

Isolamento

Após os depoimentos na delegacia, Rosana e Kacyla foram levadas ao Presídio Feminino do Distrito Federal, o Colmeia, no Gama. Lá, estão isoladas das outras detentas para não sofrerem represálias. O fim das investigações levou a indiciamentos por cinco crimes na comarca do DF: homicídio qualificado por motivo torpe e impossibilidade de defesa; tortura; lesão corporal gravíssima; ocultação de cadáver; e fraude processual. No total, as duas podem pegar até 57 anos de prisão. Outras denúncias devem ser somadas em jurisdições pelas quais elas passaram ao longo da fuga, como abandono intelectual, já que as crianças não estudaram neste período; furto e corrupção de menores, no caso da chácara de Aragoiânia/GO, em 2017, e sequestro, no Acre, por tomarem as crianças sem serem as guardiãs legais.

Mães que ainda amam suas filhas assassinas

Dona Raimunda Lima, a Bizita, mandou recado à neta, criada por ela após a fuga de Zenaide – mulher que trouxe Kacyla à vida. Ao fim da entrevista, ela se agarra ao sofá no qual está sentada e, numa espécie de transe, questiona os atos da mulher que cresceu chamando-a de mãe. “Ê, filha, pra quê que você fez isso? Você deveria ter pensado muito antes, porque você tinha uma vida boa, uma vida tranquila como você sabe que tinha tudo o que queria. Tudo que você pedia a gente dava pra você. O que lhe deu pra você aceitar fazer isso mais a Rosana? É triste para sua mãe, sua mãe sofre muito”. Os olhos de Raimunda se encharcam e as mãos tremem. Os dedos dançam no braço do móvel buscando o apoio que não vem há cinco anos, desde que a menina sorridente deixou o Acre para nunca mais voltar.

Pouco antes do retorno a Brasília, a reportagem recebeu uma ligação de Maria Antônia, mãe de Rosana. “Pode passar aqui?”, perguntou. No bairro João Paulo II, a avó materna de Rhuan entregou um envelope azul endereçado à filha. Com permissão da mulher, o Jornal de Brasília teve acesso ao conteúdo. Uma carta de Maria Antônia questiona os motivos que levaram ao assassinato do neto. “Um ser que saiu de dentro de mim matou seu próprio filho, filho que é a herança que Deus nos dá. Como pode?”. Maria Antônia também não crê que a morte fosse a única opção. “Por que não deu ele pra mim? (…) Poderia ter deixado numa delegacia com os nossos nomes, num papel”, lamenta a avó do menino. Apesar do tom duro e indignado, ela se desculpa com Rosana, talvez por não tê-la aceitado de volta quando ficou grávida, lembrando-a que sempre vai amá-la: “Desde já, quero lhe pedir perdão por toda a mágoa que tem de mim, me perdoe por tudo o que eu lhe fiz sofrer, me perdoe em nome de Jesus (…) Eu não poderia deixar de dizer que eu te amo, é minha filha que Deus me deu.”

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