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Brasília

Trinta e oito denúncias de violência doméstica são registradas por dia no DF

Arquivo Geral

25/11/2015 6h00

Carla Rodrigues

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É como se a boneca antiga pendurada no portão fosse o retrato simbólico daquelas mulheres. São três: mãe, filha e neta. E o brinquedo, na entrada da casa, está destruído, como elas. Na verdade, sobrou bem pouco da boneca: algumas marcas e a triste sensação, para quem vê, de que ela abre caminho para as histórias do lado de dentro. São três   gerações marcadas por murros, facas, estiletes, tesouras e pedaços de pau. Vidas que representam  as mais de 8,3 mil   vítimas da violência doméstica do DF, inseridas nas 6,9 mil   ocorrências registradas pela Secretaria de Segurança apenas no primeiro semestre deste ano. Por dia, são mais de 38. E, em alguma dessas denúncias, está também a de  Júlia (nome fictício). 

“Ele simplesmente queimou tudo. A casa toda. Me bateu, me xingou.  A sorte é que as meninas (filhas) não estavam em casa. Foi Deus”, lembra  a mulher de 29 anos. O ex-marido, que agora desapareceu, passou os últimos dois anos do relacionamento a agredindo. “Foram 15 anos. No início, tudo eram flores, como dizem. No final, eu   não sabia mais o que fazer. Ele tinha ciúmes. Parou de trabalhar, passou a beber”, conta. “Ele xingava minha filha mais velha, tentava bater nela. Qual mãe deixa um filho apanhar?”, relata. 

Júlia não deixava. Para defender a menina, de   13 anos, sujeitava-se a recorrentes surras: até facadas, como em uma das vezes. “Essa marca aqui,   no braço, foi ele. Ele tentou me matar. Dizia para minha mãe que ainda ia me matar e entregar minha cabeça numa bandeja para ela. Bom, ele quase conseguiu. Só não  porque, no dia em que ele colocou fogo na casa, eu saí correndo. Fui para a casa da minha avó. Fiquei   escondida”, conta a  auxiliar administrativa, que   ganha um salário de R$ 670. Dinheiro que não dá para recuperar, em curto tempo, roupas, móveis e eletrodomésticos perdidos.

“Estou vivendo de doações.  E não posso desistir.  Tenho que me reerguer, me reencontrar e viver bem com as minhas filhas”, diz Júlia, parecendo tentar se convencer de que é preciso continuar, apesar de tudo. “Só quero   criá-las sem problemas. Isso vai passar. Eu tenho medo,  mas  não posso ficar parada, achando que, a qualquer hora, ele vai voltar e me matar. Pode acontecer, mas  não posso desistir”, conta.

Começar uma nova história

E entre uma ajuda e outra,  aos poucos, as três mulheres de uma mesma família tentam renascer e reescrever suas histórias.  Maria, mãe de Fátima e avó de Júlia, encontra apoio na “palavra de Deus”, como ela mesmo diz. Vai à igreja, ora e reza por suas filhas e netas.  Fátima (foto) encontra forças no dia a dia, ao lado dos filhos, dos netos e na esperança constante de que o marido saia de casa.  Júlia, a mais jovem, acha sua vontade de continuar nos sonhos que tem. Ela não desiste. “Tem que ter coragem, né? Quero me reerguer. Vou conseguir”, garante. 

Mãe e filha enfrentam problema

A mãe de  Júlia  confessa que acompanhou todo o sofrimento da filha de perto. Mas o que podia fazer? Ela também tinha o que chamou de “problemas dela”. Dentro de casa,  Fátima (nome fictício), de 43 anos, sofria o mesmo que a filha. “Eu queria poder dizer que essa é a primeira vez que acontece violência doméstica na família. Mas não é”, confessa, com um rubor no rosto, como se tivesse vergonha do que vem a seguir. “Eu também passei por isso. Meu marido é agressivo. Me agride com palavras. Levei chutes”, lembra. 

“Quem deseja mal para o filho? Nenhuma mãe. Eu nunca quis isso para ela. Só que eu não podia fazer nada. Parece uma sina dentro da nossa família”, fala. “Eu não imaginava que fosse chegar a esse ponto. Mas chegou. Aí, agora, o que posso fazer é desejar que minha filha consiga realizar os sonhos dela. Que ela consiga coisas boas. Um emprego bom, por exemplo. Ela precisa de dinheiro para cuidar das meninas. Ele, aquele covarde, fugiu”, diz Fátima, que prefere não detalhar a  violência  que ela mesma sofreu. “São palavras que eu prefiro não repetir”, afirma, apontando para algumas marcas na perna.

Prisão e morte trouxeram alívio

Fátima (nome fictício) aponta para as marcas que a mãe dela, avó de Júlia (nome fictício), e resolve contar o que também sofreu em casa, nas mãos do pai dos filhos. “Era facada, tesoura, pau. Tenho as marcas também. Olha aqui nas costas”, aponta Maria (nome fictício), de 65 anos. “Ele não fazia isso por ciúme. Acho que ele só queria que eu morresse. Tinha outra família. Foram mais de 25 anos assim. Ele foi meu primeiro namorado”, conta. 

Na época, Maria sabia que aquilo não era normal. Mas, por medo, não denunciou. Dona de casa, com cinco filhos para criar, ela se sujeitou às surras diárias até o marido ser preso e morrer na cadeia. “Ele matou uma pessoa em Samambaia e foi preso. Me sinto mal de dizer isso, mas quando prenderam ele, me senti aliviada. E, quando morreu, parece que tiraram 500 quilos das minhas costas”, diz a senhora. Ela, a filha e a neta moram no mesmo lote.

Dados

O número de ocorrências deste ano é maior do que os de 2014, quando foram registradas 6.921 denúncias no primeiro semestre. A quantidade de vítimas também aumentou. Foram 8.170 mulheres agredidas no ano passado. Até agora, são 142 a mais. O que não significa que há mais agressões. Para a delegada-chefe da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), Ana Cristina Melo Santiago, os dados podem ser resultado da Lei Maria da Penha, de 2006. 

“Só em 2012, o Supremo reconheceu a constitucionalidade da lei. Até 2006, violência doméstica era tratada como ‘briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’. Antes, a mulher era associada à responsabilidade daquela violência. Hoje, elas são instruídas a procurar a Justiça”, conclui Ana Cristina.

Saiba mais

O telefone para denúncia de violência doméstica é o 156, opção 6, ou o número 180, da Secretaria de Políticas para Mulheres do Governo Federal. 

Ao todo, são 7.548 autores denunciados. Desses, 558 são reincidentes.

Ciclo e reincidências

Os dados da Secretaria de Segurança apontam que os crimes mais comuns no que diz respeito à Lei Maria da Penha são ameaça (30,58%), injúria (27,5%), confronto físico (9,10%), lesão corporal (8,26%) e lesão corporal dolosa (6,83%). 

“A violência vem em uma espiral crescente. Ninguém é um excelente companheiro e, do dia para a noite, te dá um soco na cara”, observa a delegada Ana Cristina Melo Santiago, que explica o chamado “ciclo da violência doméstica”. “Primeiro, tem a briga, depois, a violência física e, por último, a fase da lua de mel. Isso é um ciclo” informa a delegada. Ela ressalta que as 515 vítimas foram agredidas mais de uma vez, segundo estatísticas do primeiro semestre deste ano. 

Às segundas-feiras, dia em que a delegacia fica mais cheia, diz a delegada-chefe, aproximadamente 20 casos são registrados. “E são ocorrências demoradas, que exigem cuidado, detalhes. Cada atendimento dura, em média, uma hora e meia. Porque o juiz, quando vai avaliar a medida protetiva, tem tão somente o relato feito na delegacia. Então, a gente informa se isso aconteceu ou não, se ela já viu esse homem portando arma, se ele tem o hábito de se drogar. E você vai contar a história em si, o que aconteceu”, salienta Ana Cristina.

Educação e investimento

De acordo com a delegada Ana Cristina Melo Santiago, não há um perfil das vítimas. “São mulheres de todas as idades e classes sociais. A diferença com relação a uma mulher que tem dinheiro e formação é que ela tem uma rede de apoio muito maior. As de baixa renda, muitas vezes, dependem financeiramente do agressor”, diz.

É comum entre as mulheres agredidas, ressalta a delegada, a naturalização de comportamentos. “Os agressores dão sinais, como ciúmes. O ciúme excessivo e a dominação são traços característicos do agressor. Ele começa a isolar a mulher. Só que isso é visto ainda com muita naturalidade. E não deve ser”, afirma. Por isso, diz Ana Cristina, “vencer a violência doméstica está longe de acontecer”. Para ela, demanda anos de educação e investimento. 

O JBr. buscou representante da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Semidh), mas não obteve retorno até o fechamento desta edição. O GDF oferece proteção à mulher vítima de violência doméstica, como a Casa Abrigo.

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