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Brasília

Especial – Caso Rhuan – Jornada de fuga e metamorfose

Após o início do relacionamento, Rosana e Kacyla passam por transformação radical, que definirá o destino de Rhuan. Exigências e restrições religiosas entrarão na sua rotina

Olavo David Neto

18/07/2019 6h30

Atualizada 25/11/2020 15h50

A longa jornada de um inocente rumo ao inferno

Um dia, Rosana e Kacyla pegaram seus filhos, Rhuan e G., e desapareceram no mundo. Passaram por pelo menos seis cidades após Rio Branco, no Acre, até chegar a uma casa humilde em Samambaia, localidade a 30 quilômetros do Plano Piloto.

Para Rhuan, é a trágica jornada de uma inocente criança de menos de nove anos na direção do inferno em vida. As proibições de motivação religiosa relacionadas a desenhos animados, personagens infantis e determinados brinquedos se intensificam.

Ele não brinca mais na rua. Tem de madrugar para estudar a Bíblia e tomar banho frio. Ações na Justiça tentam afastá-lo do restante da sua família. Kacyla também estimula Rosana a se distanciar de Rhuan.

A transformação que se processa sobre Rosana e Kacyla é impressionante. Cortam seus cabelos bem curtos. Rosana irá depois descolorí-los e irá também descolorir suas sobrancelhas. As duas mudam os nomes com que se apresentam. Rosana vira Ana e Kacyla, Priscila.

O que se esboçava nos comportamentos de ambas em Rio Branco no início da relação vai ganhando contornos estranhos que acabarão mais tarde se tornando macabros. O quarto capítulo da série de reportagens especiais sobre o caso Rhuan narra essa jornada.

“Ela não ia devolver o menino”

Olavo David Neto, enviado especial a Rio Branco (AC)
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A estadia de seis anos na casa da família de Maycon Douglas, pai de Rhuan, chegara ao fim. Após uma briga com Maria do Socorro, ex-sogra, Rosana Auri da Silva Candido se juntou à nova companheira, Kacyla Priscila Santiago Damasceno Pessoa, no bairro do Santo Afonso. Atenta às reclamações e ao medo do menino de voltar à casa da mãe, a família paterna conseguiu que Rhuan voltasse à residência onde nasceu, cresceu e gostava de estar. “Ele ficou aqui durante o processo, e, às vezes, ela queria vê-lo e eu levava ele lá na frente”, conta Francisco das Chagas, ou Chaguinha, o “vovô-papai” da criança. A vida começa a ficar mais difícil para Rhuan. Ele passa a ser obrigado a acordar muito cedo para estudar a Bíblia. A rotina se segue com banho frio às 6h. Desenhos só eram permitidos se fossem “consagrados por Deus”. Brincadeiras de rua tornam-se restritas.

Kacyla convenceu a namorada a participar de um “tratamento espiritual”, e quando voltaram, Rosana já havia cortado os longos cabelos. O casal montou um verdadeiro cerco jurídico em torno de si. Entre visitas esporádicas acompanhada da nova companheira – que estimulava Rosana a se desapegar do filho -, a mãe de Rhuan fez diversas denúncias contra Chaguinha e o ex-namorado, Maycon. “Ela falou que eu corri atrás dela, ameaçando”, comenta Francisco, que perdeu a perna direita num acidente de moto em 2009 e sequer usava prótese à época. “Você já viu um aleijado correr atrás de alguém?”, questiona o aposentado de 63 anos. Maria Antônia, mãe de Rosana, comenta que a filha já havia perdido o sorriso frouxo e a postura feliz, “como se a Kacyla fosse uma mente que conseguiu dominar ela”, conforme o relato da avó materna de Rhuan – que teve de impedir a própria filha de atear fogo à sua casa.

Presente

Quando Rosana apareceu na Rua São Raimundo, no bairro da Cadeia Velha, e pediu para levar o filho Rhuan Maycon “para um passeio”, a família paterna do menino se preparava para comemorar mais um aniversário da matriarca Maria do Socorro. “Hoje, tanto faz. É um dia muito triste”, desabafa Maria. Era 18 de dezembro de 2014, última vez que ela veria o neto mais velho. Sem se convencer do retorno do filho, Maycon pegou a moto e partiu à casa da ex-sogra, no bairro Santo Afonso. “Ele chegou aqui com os olhos cheios de lágrimas, dizendo que ela não ia devolver o menino“, lembra Maria Antônia, avó materna de Rhuan. “Eu disse que, se ela falou que ia devolver, ele ia ver o filho”. Maycon voltou à casa dos pais, mas Maria Antônia sequer acreditou nas próprias palavras. Correu para pedir ajuda, mas, quando voltou, viu Rosana e Kacyla entrarem numa viatura da Polícia Militar com os filhos a tiracolo. “Ela me ligou depois e falou que eu a tinha traído por preconceito“, comenta a mãe.

Rosana e Kacyla moravam na mesma rua de Maria Antônia, a 200 metros de onde o diálogo entre a mulher e Maycon aconteceu. Viu tudo pela janela de casa. As denúncias feitas garantiram escolta policial e vaga numa instituição de apoio a mulheres em situação de vulnerabilidade, a Casa Abrigo Mãe da Mata, local sigiloso coordenado pela Delegacia Especializada de Apoio à Mulher. A Justiça do Acre marcou quatro audiências de custódia, mas as duas não compareceram a nenhuma delas. Chaguinha, avô paterno de Rhuan, soube através de fontes ligadas à instituição que o abrigo teria bancado as passagens para o que seria o início de uma fuga de cinco anos.

“A Rosana fechava a cara pra mim sempre. As crianças eram trancadas em casa quando chegávamos lá”
Marizete Chaves

Em fuga, dupla é caçada

Para Liberdade Nascimento, que dividiu apartamento com o casal por cerca de um mês, o financiamento da viagem pode ter vindo de longe. Kacyla conhecera um homem no Badoo, aplicativo de encontros, que frequentemente lhe ajudava financeiramente. “Elas comentavam que podiam arrumar as coisas e ir embora para o Nordeste, que esse fulano podia ajudar elas”, rememora a jovem, sem lembrar qual seria exatamente a cidade. O itinerário de Rosana e Kacyla dá pistas: ao sair de Rio Branco, as duas desembarcaram em Maceió (AL). A avenida Dr. Celestino Chagas da Silva, no bairro Cidade Universitária, foi declarada como residência das duas pela advogada de Chaguinha, Octávia Moreira.

O paradeiro veio pelo extrato bancário de Kacyla, obtido de forma clandestina com um funcionário da Caixa Econômica Federal. Os saques da pensão paga por Rodrigo Oliveira – ex-marido de Kacyla e pai da menina G., levada pela mãe – desde o divórcio, em 2010, eram a bússola para seguir o rastro das foragidas, mas as pistas rarearam. As duas sumiram novamente até chegarem a Trindade, interior do estado de Goiás. O radar de Rodrigo e Chaguinha deram sinal.

Os dois resolveram aguardar, e já em 2017, soube-se que elas estavam em Anápolis, outra cidade goiana. É aí que a representante legal de Francisco, avô de Rhuan, aponta falhas. A dupla encontrou a casa onde as mulheres e as crianças moravam, na Rua PB, 1, quadra 07, lote 31, casa 2, no bairro Parque Brasília. Mas, temendo restrições jurídicas, não entrou na casa. “Eles foram ao Conselho Tutelar com procuração e não aceitaram”, relata a advogada. “Quando foram denunciar, disseram que a criança estava com a mãe e também não aceitaram”.

Os meninos não estudaram durante o período clandestino, e também não receberam atendimento médico. O Estatuto da Criança e do Adolescente criminaliza tais práticas. Moreira acrescenta que os pequenos eram estimulados a praticar pequenos delitos, pois “elas não conseguiam sobreviver apenas com a pensão da G.”. Segundo ela, se aceitasse a denúncia “e cumprisse seu papel”, o Conselho Tutelar constataria os maus tratos e a suposta tortura denunciada por Chaguinha. O órgão enviou nota – assinada por cinco conselheiros – ao Jornal de Brasília alegando que Francisco esteve lá apenas com o mandado de Busca e Apreensão, sem qualquer procuração, e não efetuou denúncias.

Mudança de nomes e furto em chácara

Feitas ou não, aceitas ou não, as informações de Octávia batem com o relato de Marizete Chaves, proprietária da chácara onde Rosana e Kacyla receberam abrigo, em Aragoiânia, Goiás. Em 2017, no lote em frente ao dela, duas mulheres e duas crianças foram expulsas pelo fato das adultas serem homossexuais. A orientação sexual do casal já rendera uma expulsão da igreja que as duas frequentaram em Anápolis.

Acolhidas por Marizete, foram acomodadas na casa extra, e lá ficaram por três meses. Até que a família voltou de surpresa à residência de descanso e encontrou uma janela quebrada “com espaço para passar apenas uma criança”. Dentro da casa, deram falta de um forno de microondas, roupas de cama e itens da despensa. “Vimos rastros de carro, fomos à cidade, mas não soubemos quem ajudou na fuga”, comenta Marizete. Ela também conta que pouco contato teve com o quarteto. “Ela [Rosana] fechava a cara pra mim sempre. As crianças eram trancadas em casa quando chegávamos lá”, relata.

Durante todo o período de fuga, Rosana e Kacyla usavam os nomes de Ana e Priscila, respectivamente.

Chegada a Brasília

Quando Chaguinha e Rodrigo decidiram se dirigir à casa onde a dupla morava em Anápolis, as duas já haviam fugido. Segundo pessoas da vizinhança, “elas saíram no final da madrugada levando tudo numa caminhonete preta”. O destino era o Distrito Federal. Guilherme de Sousa Mello, delegado da 26ª Delegacia de Polícia, em Samambaia, acredita que elas passaram cerca de um ano em Ceilândia. Dali, mudaram-se para Samambaia Norte. No final de abril, uma das duas passou mal e foi atendida na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) da região. Ao fazer o registro na unidade de saúde, os sistemas alertaram sobre o paradeiro das mulheres.

Uma irmã de Rodrigo residente no Distrito Federal visitou o endereço e deu de cara com uma barbearia. Sem desistir, ela deu descrições aproximadas das crianças e das mulheres para funcionários e clientes.

Um dos funcionários disse que, sim, conhecia uma mulher de acordo com o relato. Era a pista que faltava. Francisco e o pai de G. marcaram viagens para a primeira terça-feira de junho, mas apenas Rodrigo embarcaria rumo à capital da República.

Chaguinha, que comprometeu todo o contracheque em esforços para encontrar o neto, encontrou o menino morto. Rodrigo recuperou a filha, e vive com ela e a nova esposa no bairro do Belo Jardim 2, periferia de Rio Branco.

Rosana e Kacyla se mudaram de novo, mas desta vez para o Presídio Feminino do Distrito Federal, o Colmeia, no Gama.

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