Celebrado neste mês de novembro, no dia 20, o Dia da Consciência Negra inspirou docentes do Centro de Ensino Médio 02 de Ceilândia a realizar uma ação de incentivo à beleza preta, por vezes desestimada ou não vista por alunas da instituição de ensino. Pensando em alterar esta realidade que persistia no ambiente escolar, foi criado o projeto “Crespas e Cacheadas”, que consiste em aproveitar um dos sábados letivos do colégio para um dia de ensaio com fotógrafos profissionais voluntários.
A ideia inicial surgiu em 2013 quando os professores da instituição notaram um comportamento comum nas jovens: cabelos presos e muitos rostos cabisbaixos. Percebendo que a motivação para o retraimento das alunas era em maioria a baixa autoestima – ligada à beleza – a professora Regina Cotrim, que também é fotógrafa, então, começou a fazer fotos das alunas em sala de aula, mostrando o quão bonitas eram, independentemente do que pensavam de si mesmas. As fotografias pelas lentes da professora fizeram brilhar os olhos das estudantes.
Quem deu a ideia para ampliar a iniciativa em toda a escola como um projeto foi o professor de História Gildenor de Araújo Sousa, 56 anos, que também se arrisca como fotógrafo nos dias do ensaio. “Muitas andavam com o cabelo preso e com o olhar cabisbaixo, se achando feias por conta dos traços negros que têm. Por muito tempo a grande mídia colocou o padrão de beleza como sendo o cabelo liso, a pele clara… E o preto, em novelas, não era tão valorizado”, comentou ele que é um dos coordenadores do projeto.
Diretor e professor de matemática do CEM 02 de Ceilândia, Eliel de Aquino, 62, conta que a intenção é ir na direção oposta ao que é visto nas telas, mas ao que é reforçado também dentro de casa pelas mães das alunas, muitas vezes. “Fazemos o contrário daquilo que as propagandas de chapinhas e alisadores promovem, que desqualificam os cabelos crespos. [O projeto] ‘Crespas e Cacheadas’ é justamente para incentivar a manter as qualidades naturais do cabelo. Queremos mostrar que toda mulher pode ser quem é”, destacou.
Gildenor, há mais de 20 anos nas salas de aula, relata que na escola se vive “o Brasil real” todos os dias, e não aquele mostrado nas telas em histórias de novelas. “[…] E a riqueza da escola pública é que ela [instituição] não discrimina, e é cheia de diversidade”, disse. “Percebemos alguns alunos que ficavam retraídos e se travavam. Tentávamos conversar, mas não davam abertura”, contou ainda.
Não satisfeito, durante os dias que se passaram na escola, ele provocou – e ainda provoca, se necessário – alguns questionamentos para os alunos e alunas, chegando ao ponto de perguntar os porquês das meninas andarem sempre com o cabelo preso. A resposta mais comum era que elas não gostavam. “A consciência negra não pode ser só em um dia, o combate ao racismo também não. O combate à discriminação precisa ser o ano todo”, defendeu.
Em 2017, então, resolveram criar o projeto nos moldes de como funciona hoje, convidando fotógrafos para um ensaio de um dia na escola, que tem bons espaços ao ar livre para os registros. A iniciativa só não teve edição no ano passado, devido à pandemia da covid-19, que forçou os alunos a ficarem em casa. Este ano, no entanto, as fotos foram feitas no sábado do dia 23 de outubro com 15 fotógrafos, que fizeram mais de mil fotos das alunas e alunos que quiseram participar.
Não são só fotografias
A ex-aluna, Samuelle de Albuquerque Costa, 18, conta que para ela foi um tempo de muito aprendizado e de crescimento mútuo com outras meninas da instituição de ensino. Segundo ela, havia sempre a expectativa para o grande dia das fotos, onde todas poderiam se produzir para garantir bons registros não só para a exposição do Dia da Consciência Negra, mas também para aumentar a autoestima.
“O que é mais interessante é que não vamos simplesmente tirar fotos. Tem toda uma preparação com maquiadoras, depois fazemos uma roda de conversa para cada uma contar sobre os cuidados com o cabelo, trocamos experiências ruins, damos dicas de cremes e ficamos confortáveis para falar sobre preconceito e racismo”, disse Samuelle. Nesses encontros, ela relatou que algumas também mostram novos penteados.
A transição capilar – processo para resgatar o cabelo crespo e cacheado, que perdeu parte da característica original pelo alisamento durante anos – também é um dos assuntos tratados na roda de conversa. “É um período difícil porque o cabelo ainda não está nem cacheado nem liso e precisamos incentivar umas às outras para continuar nesse processo, ainda que não seja o mais confortável”, afirmou a ex-aluna.
“[O projeto] é ótimo. Para mim foi uma experiência maravilhosa. Me aceitei muito mais, fiquei mais à vontade para sair com meu cabelo do jeito que ele é. Nos empodera”, contou. “Algumas meninas vêm falar comigo sobre como mantenho meu cabelo e aproveito a experiência que eu tive e falo o que aprendi. Com certeza levei um novo olhar.”
Ainda de acordo com Samuelle, uma das melhores partes do projeto é no dia em que um vídeo com as fotos é mostrado. Ela relata que a euforia é geral quando as fotos passam. “Todo mundo gosta e aplaude. As pessoas comentam: ‘nossa, essa é fulana?’, ou então ‘caramba, você deveria deixar o cabelo mais solto assim’, sempre incentivando depois que viram as fotos. É incrível.”
Débora Dias, aluna do 1º ano do Ensino Médio do CEM 02, conta que ficou muito feliz em participar das fotos feitas no projeto e entende a importância da iniciativa para reforçar a beleza preta para outras garotas. “É uma coisa super necessária. Infelizmente, a baixa autoestima e a comparação com outras meninas de cabelo liso ainda acontece nas escolas”, disse. “Amei a experiência.”
“Todo mundo foi muito atencioso e os fotógrafos ajudaram as meninas que não tinham experiência com câmeras, perdendo a vergonha no final. Foi meu primeiro ano participando e com certeza vou participar nos próximos. Amei as fotos e foi tudo mundo lindo. Dou parabéns por esse projeto maravilhoso”, concluiu.
Parte dos registros será exposta durante o Dia da Consciência Negra, e a outra parte enviada para as alunas e alunos que participaram. Além da exposição das fotos, os estudantes do CEM 02, por turma, separaram-se em temas específicos relacionados à história afro. Durante o dia, apresentarão conhecimentos da cultura preta manifestos na dança, na culinária, na religião, nos instrumentos musicais e, como não poderia faltar, nos cabelos também.
O vice-presidente do grêmio estudantil do CEM 02, Luiz Philipe Silva Rodrigues, 17, conta que a diferença no comportamento dos alunos antes e depois do projeto é perceptível. O aluno do 2° Ano H esteve no dia do ensaio fotográfico e relatou que todos estavam muito animados para participar, levando em mochilas e malas as melhores roupas que poderiam para fazer as fotos.
“As fotos mostram como as pessoas são lindas, e elas estavam escondidas num canto. O projeto mostra como os alunos e alunas são lindos. Isso aumenta a autoestima dentro da escola e percebemos que alguns passaram a andar com o cabelo mais solto, mais confiança”, relatou o jovem. “Muitas nunca tiveram contato com fotógrafos profissionais e estão indo fazer fotos pela primeira vez. Isso já dá aquela animação”, comentou ainda.