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Brasília

Acidentes de trânsito fatais: liberdade para autores é quase uma garantia

Arquivo Geral

26/04/2017 7h28

Myke Sena/Jornal de Brasília

Manuela Rolim
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A chance de alguém que matou outra pessoa no trânsito permanecer preso é praticamente nula. A liberdade concedida a uma jovem de 20 anos um dia após atropelar um ciclista, no Lago Norte, reforça a afirmativa e coloca em prova a legislação – e suas brechas. O caso ganhou repercussão imediata, em especial pelo grau de embriaguez da condutora, e deu voz a especialistas. Para eles, passou da hora de o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) ser revisto.

Raríssimas situações são caracterizadas como homicídio doloso – quando há a intenção de matar -, ainda que o consumo de álcool seja comprovado, diz o especialista de trânsito Márcio de Andrade. Isso porque qualquer ocorrência envolvendo veículos é regida pelo CTB, inclusive os homicídios. A questão é que o código determina que, inicialmente, todo o crime é de natureza culposa – quando não há a intenção de matar. “Portanto, trata-se de uma legislação especial, que nada tem a ver com o Código Penal”, esclarece. A classificação pode mudar para dolosa no decorrer no inquérito, mas é incomum.

“Se tivéssemos uma situação em que passageiros de um táxi pedissem para o motorista diminuir a velocidade e, ainda assim, ele continuasse a correr, provocando um acidente fatal, o juiz poderia decidir pelo dolo depois de ouvir as testemunhas”, exemplifica Andrade.

Saiba mais

– O ciclista Edson Antonelli, 61 anos, foi atropelado enquanto pedalava na ciclofaixa do Lago Norte, na manhã último domingo. A motorista Mônica Karina Rocha Cajado Lopes, 20, voltava de uma festa quando atingiu a vítima. Ela estava alcoolizada.

– Na segunda-feira, o Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT) liberou a universitária. A jovem pagou fiança de R$ 5 mil e vai responder em liberdade por homicídio culposo (sem intenção de matar) e embriaguez ao volante. Caso seja condenada pelos dois crimes, Mônica pode pegar entre dois e sete anos de reclusão.

– Medidas cautelares foram impostas. A jovem não pode ausentar-se do DF por mais de 15 dias, nem mudar de endereço sem comunicar o juízo. Além disso, deve manter seus dados pessoais, endereço e telefone atualizados; e comparecer bimestralmente à Justiça para justificar suas atividades.

Para o especialista, no caso do ciclista, a condutora, apesar de assumir o risco de dirigir alcoolizada, não saiu com a intenção de atingir a vítima. “Ainda assim, a lei precisa ser revista. No meu ponto de vista, em ocorrências como essa, o homicídio é com dolo eventual. Ou seja, o autor do crime assume que ignorou a legislação, mas não tem o objetivo de matar alguém. Esse risco não é exclusivo de ocorrências envolvendo a ingestão de bebida alcoólica. Situações tão perigosas quanto a embriaguez, como ultrapassar a velocidade da via ou avançar um sinal vermelho, também se enquadram”, completa.
O especialista destaca ainda o benefício da fiança: “O valor vai de acordo com o poder aquisitivo do acusado. A garantia da liberdade provisória vale para todos”.

O problema é que essa sensação de impunidade tende a deixar os motoristas menos preocupados, alega Andrade. “Para mim, carregar a culpa de matar é penalidade para o resto da vida, mas tem gente que supera e pode voltar a dirigir fora da lei. A dor da família da vítima, porém, é eterna” completa.

Interpretação da Justiça

O especialista em Direito Constitucional Gustavo Dantas explica que a legislação enxerga a garantia da liberdade como regra. Portanto, o delegado pode arbitrar fiança no caso de uma detenção. Já em situações de reclusão, apenas o juiz pode tomar essa decisão. “Foi o que aconteceu com a autora do atropelamento”, explica.

De acordo com a Polícia Civil, crimes com penas máximas que ultrapassam quatro anos não permitem fiança. No entanto, “foi o Poder Judiciário – após o recolhimento da autora à carceragem e encaminhamento para audiência de custódia – quem afiançou. E isso também é previsto na legislação”, informa a corporação.

Amigo íntimo da família do ciclista, o analista de sistemas Márcio Macedo, 61, lamenta a soltura da suspeita, mas admite não estar surpreso com a decisão do juiz. “A família está indignada, mas já esperávamos por isso. São tantas brechas na nossa legislação que não fomos pegos de surpresa. Agora, ela está na rua, mas o buraco que deixou jamais será reparado. Não tem fiança que pague essa dor”, afirma Márcio, que já perdeu um filho de 19 anos em acidente de trânsito. “A gente perde a vontade de viver. Fica anestesiado”, completa.

Para ele, a legislação tenta ser firme, mas abre margem para muitas regalias. “Agora, todo mundo vai ter certeza que se matar alguém no trânsito ganhará a liberdade no dia seguinte”, declara. Macedo afirma que na semana anterior à morte do amigo eles saíram juntos.
“Nos encontramos na casa de uns amigos do antigo trabalho. Ele e a esposa foram de Uber porque sabiam que iam beber e voltaram comigo. Minha mulher não consumiu nada nesse dia. Sempre tivemos essa preocupação. Dias depois, tiraram meu amigo de mim”, lamenta.

Mulher morre no Eixão

Kleber Lima/Jornal de Brasília

Kleber Lima/Jornal de Brasília

Outro acidente fatal foi registrado no Eixão Norte, por volta das 15h de ontem. Uma mulher morreu e outra ficou ferida depois que dois veículos colidiram na altura da SQN 103, no sentido Rodoviária do Plano Piloto. Segundo o Corpo de Bombeiros, Liane Pereira Uchôa, 49, que dirigia um Renault Sandero vermelho, sofreu um trauma na cabeça e parada cardiorrespiratória. O socorro tentou reanimá-la por cerca de 45 minutos, mas ela morreu ainda no local. Já a condutora do Hyundai Elantra branco foi atendida e transportada para o Hospital de Base com fortes dores no tórax. A mulher, de 25 anos, foi levada consciente, orientada e estável. Os pais de Liana foram até o local após receber a notícia. Abalada, a mãe, Regina Uchôa, contou que a filha estava em tratamento no Brasil. “Ela morava nos Estados Unidos e veio se tratar de uma enxaqueca que ela sentia”, disse.

Segundo Regina, a filha estava a caminho de casa, após sair da aula de yoga no Lago Norte. “É inacreditável. Ela estava muito feliz porque foi pedida em casamento ontem pelo noivo”, lamentou. O laudo da perícia deve apontar a dinâmica do acidente.

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