Manuela Rolim
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A chance de alguém que matou outra pessoa no trânsito permanecer preso é praticamente nula. A liberdade concedida a uma jovem de 20 anos um dia após atropelar um ciclista, no Lago Norte, reforça a afirmativa e coloca em prova a legislação – e suas brechas. O caso ganhou repercussão imediata, em especial pelo grau de embriaguez da condutora, e deu voz a especialistas. Para eles, passou da hora de o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) ser revisto.
Raríssimas situações são caracterizadas como homicídio doloso – quando há a intenção de matar -, ainda que o consumo de álcool seja comprovado, diz o especialista de trânsito Márcio de Andrade. Isso porque qualquer ocorrência envolvendo veículos é regida pelo CTB, inclusive os homicídios. A questão é que o código determina que, inicialmente, todo o crime é de natureza culposa – quando não há a intenção de matar. “Portanto, trata-se de uma legislação especial, que nada tem a ver com o Código Penal”, esclarece. A classificação pode mudar para dolosa no decorrer no inquérito, mas é incomum.
“Se tivéssemos uma situação em que passageiros de um táxi pedissem para o motorista diminuir a velocidade e, ainda assim, ele continuasse a correr, provocando um acidente fatal, o juiz poderia decidir pelo dolo depois de ouvir as testemunhas”, exemplifica Andrade.
Saiba mais
– O ciclista Edson Antonelli, 61 anos, foi atropelado enquanto pedalava na ciclofaixa do Lago Norte, na manhã último domingo. A motorista Mônica Karina Rocha Cajado Lopes, 20, voltava de uma festa quando atingiu a vítima. Ela estava alcoolizada.
– Na segunda-feira, o Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT) liberou a universitária. A jovem pagou fiança de R$ 5 mil e vai responder em liberdade por homicídio culposo (sem intenção de matar) e embriaguez ao volante. Caso seja condenada pelos dois crimes, Mônica pode pegar entre dois e sete anos de reclusão.
– Medidas cautelares foram impostas. A jovem não pode ausentar-se do DF por mais de 15 dias, nem mudar de endereço sem comunicar o juízo. Além disso, deve manter seus dados pessoais, endereço e telefone atualizados; e comparecer bimestralmente à Justiça para justificar suas atividades.
Para o especialista, no caso do ciclista, a condutora, apesar de assumir o risco de dirigir alcoolizada, não saiu com a intenção de atingir a vítima. “Ainda assim, a lei precisa ser revista. No meu ponto de vista, em ocorrências como essa, o homicídio é com dolo eventual. Ou seja, o autor do crime assume que ignorou a legislação, mas não tem o objetivo de matar alguém. Esse risco não é exclusivo de ocorrências envolvendo a ingestão de bebida alcoólica. Situações tão perigosas quanto a embriaguez, como ultrapassar a velocidade da via ou avançar um sinal vermelho, também se enquadram”, completa.
O especialista destaca ainda o benefício da fiança: “O valor vai de acordo com o poder aquisitivo do acusado. A garantia da liberdade provisória vale para todos”.
O problema é que essa sensação de impunidade tende a deixar os motoristas menos preocupados, alega Andrade. “Para mim, carregar a culpa de matar é penalidade para o resto da vida, mas tem gente que supera e pode voltar a dirigir fora da lei. A dor da família da vítima, porém, é eterna” completa.
Interpretação da Justiça
O especialista em Direito Constitucional Gustavo Dantas explica que a legislação enxerga a garantia da liberdade como regra. Portanto, o delegado pode arbitrar fiança no caso de uma detenção. Já em situações de reclusão, apenas o juiz pode tomar essa decisão. “Foi o que aconteceu com a autora do atropelamento”, explica.
De acordo com a Polícia Civil, crimes com penas máximas que ultrapassam quatro anos não permitem fiança. No entanto, “foi o Poder Judiciário – após o recolhimento da autora à carceragem e encaminhamento para audiência de custódia – quem afiançou. E isso também é previsto na legislação”, informa a corporação.
Amigo íntimo da família do ciclista, o analista de sistemas Márcio Macedo, 61, lamenta a soltura da suspeita, mas admite não estar surpreso com a decisão do juiz. “A família está indignada, mas já esperávamos por isso. São tantas brechas na nossa legislação que não fomos pegos de surpresa. Agora, ela está na rua, mas o buraco que deixou jamais será reparado. Não tem fiança que pague essa dor”, afirma Márcio, que já perdeu um filho de 19 anos em acidente de trânsito. “A gente perde a vontade de viver. Fica anestesiado”, completa.
Para ele, a legislação tenta ser firme, mas abre margem para muitas regalias. “Agora, todo mundo vai ter certeza que se matar alguém no trânsito ganhará a liberdade no dia seguinte”, declara. Macedo afirma que na semana anterior à morte do amigo eles saíram juntos.
“Nos encontramos na casa de uns amigos do antigo trabalho. Ele e a esposa foram de Uber porque sabiam que iam beber e voltaram comigo. Minha mulher não consumiu nada nesse dia. Sempre tivemos essa preocupação. Dias depois, tiraram meu amigo de mim”, lamenta.
Mulher morre no Eixão
Outro acidente fatal foi registrado no Eixão Norte, por volta das 15h de ontem. Uma mulher morreu e outra ficou ferida depois que dois veículos colidiram na altura da SQN 103, no sentido Rodoviária do Plano Piloto. Segundo o Corpo de Bombeiros, Liane Pereira Uchôa, 49, que dirigia um Renault Sandero vermelho, sofreu um trauma na cabeça e parada cardiorrespiratória. O socorro tentou reanimá-la por cerca de 45 minutos, mas ela morreu ainda no local. Já a condutora do Hyundai Elantra branco foi atendida e transportada para o Hospital de Base com fortes dores no tórax. A mulher, de 25 anos, foi levada consciente, orientada e estável. Os pais de Liana foram até o local após receber a notícia. Abalada, a mãe, Regina Uchôa, contou que a filha estava em tratamento no Brasil. “Ela morava nos Estados Unidos e veio se tratar de uma enxaqueca que ela sentia”, disse.
Segundo Regina, a filha estava a caminho de casa, após sair da aula de yoga no Lago Norte. “É inacreditável. Ela estava muito feliz porque foi pedida em casamento ontem pelo noivo”, lamentou. O laudo da perícia deve apontar a dinâmica do acidente.