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Brasília

A precariedade do delivery por um cadeirante

Por falta de emprego, Cleiverson Carlos, 36 anos, sobre duas rodas há um ano e meio, passou a fazer entregas por aplicativo para driblar fome

Vítor Mendonça

06/07/2021 6h12

“Se está difícil de emprego para quem não tem dificuldade, imagina para quem tem. Se está difícil para as pessoas que estão andando, que têm saúde e escolaridade, e que não estão conseguindo, imagina nós. Está muito difícil para todos. Muitas pessoas perderam tudo e foram para a rua”, afirmou Cleiverson Carlos, 36 anos, entregador de aplicativo que sente na pele, literalmente, todos os dias, a desigualdade empregatícia que atinge pessoas deficientes no Brasil.

“As dores do cadeirante são muito grandes. Porque forçamos bastante principalmente os ombros por ter que movimentar as rodas direto, sempre a mesma coisa. Essa é minha rotina – tomo remédios todos os dias para dor: Paracetamol, Dorflex…”, contou. Sem conseguir emprego nos processos seletivos que participava, o morador de Ceilândia, que é cadeirante há cerca de um ano e meio, passou a rodar na cidade fazendo entregas para conseguir renda para a casa onde mora, com a esposa Aparecida Bianca Gomes e o filho Levi, de 2 anos.

Em uma foto que circula nas redes sociais, o homem estica as costas no chão reto para aliviar as dores causadas pelo peso da mochila de entrega por aplicativo. “Encaro preconceito todos os dias, mas eu não me importo. Coloco meu fone de ouvido, começo a remar minha cadeira e passo direto. Eu sinto dores todos os dias. Não é fácil, mas a gente tem que tentar”. 

Um vídeo do cadeirante se apoiando em uma árvore em Ceilândia também viralizou no DF e evidenciou o desgaste físico causado pelas horas rodando a cidade. Com a cabeça baixa, ele tenta retomar o ar. As imagens foram feitas no último sábado (2) após um acidente que o impossibilitou de continuar o trabalho nesta semana.

Carlos, enquanto voltava para casa de uma entrega feita por um dos serviços de aplicativo em Ceilândia, foi chutado por um motociclista na descida de uma das avenidas da cidade. Caindo no chão, seu celular, por onde acessava as informações de entrega, escorregou pelo asfalto e foi amassado por um carro que passou por cima, quebrando tela e traseira do aparelho. O telefone agora só funciona para ligações, que atende por meio de um fone de ouvido.

“O que falta por parte do governo é não disponibilizar emprego para quem é cadeirante, para quem é deficiente. Tem empresas que estão colocando vagas, mas se você visse a burocracia que é para se entrar em empresas assim, a humilhação e dificuldade que é para conseguir um emprego… Tem pessoas que estão correndo para conseguir, pais de família que estão querendo até um serviço de auxiliar e pedreiro. Não conseguem”, disse Carlos, indignado.

Após as imagens que circularam depois do acidente no sábado, vários voluntários e solidários entraram em contato com o cadeirante, procurando formas de ajudá-lo. Enquanto o Jornal de Brasília conversava com Carlos, por diversas vezes, o telefone do trabalhador recebeu ligações de interessados em ajudá-lo. No início, Carlos começou sozinho, sem aplicativo, em locais que confiaram a ele as entregas a serem feitas. “Doeu, cheguei em casa todo dolorido. No começo não conseguia ficar nem quatro horas fazendo entrega porque eu não aguentava. E aí eu parei, deitei e descansei. Mas voltei de novo.”

Eu não quero fama nem ficar rico. O que eu quero é a minha mesa com comida. Já passei por maus bocados por causa de comida quando eu estava na rua...

Cleiverson Carlos

Ele decidiu começar a trabalhar como entregador em uma reportagem feita com outro cadeirante em São Paulo, que passou a trabalhar para as empresas de delivery por aplicativo durante a pandemia. “Então eu pensei: vou tentar”, disse. “Conversei com a minha esposa e com minha mãe. No começo minha mãe ficou com medo, mas ela viu que eu queria tentar e falou: vai. Minha esposa e meus amigos da igreja me incentivaram também. Meus amigos cadeirantes também”, relatou.

“Preconceito a gente vai encarar em qualquer lugar. Eu mesmo não sabia encarar as minhas dificuldades. Minha mãe e meu pastor me ajudaram muito. Foram os que mais me deram apoio, assim como minha esposa e meu filho. E muita coisa mudou desde que eu descobri mais sobre como funciona a vida de um cadeirante, o que eu podia, o que eu não podia, os trabalhos que eu podia, que eu não podia. Mas o preconceito não vai mudar, em nenhum lugar do mundo”, afirmou.

O que mais me entristece são as dificuldades encontradas diariamente na cidade, sem quase nenhuma acessibilidade. “A locomoção é muito difícil”, relata. Atividades simples para muitos, como subir e descer calçadas, são desafios para Carlos. “Hoje eu já tenho bastante habilidade porque o Hospital de Apoio [de Brasília] me ajudou bastante. Meu psicológico não era bom. Pensava o que as pessoas iriam pensar, como ia conseguir um emprego. Amigos meus já me humilharam também”, complementou.

“Eu friso aqui que não importa a tua dificuldade, quem você é ou quem você foi. O importante é você ter uma chance. De várias que você pode ter tido e que ninguém pode ter visto o seu potencial. Essa foi a que consegui. Consegui ver uma força em mim que eu não tinha. Ou talvez uma esperança que eu não tinha mais de tentar fazer e conseguir alguma coisa. Tentar mostrar para mim, para Deus e para minha família que eu conseguia”, destacou.

Acidente de trabalho

Há cerca de um ano e meio, um acidente em um trabalho informal lhe custou a locomoção e a movimentação das pernas. Foi em 15 de dezembro de 2019 que Carlos caiu de uma altura de três metros, de costas no chão. O diagnóstico dado pelos médicos foi Síndrome da Cauda Equina – lesão na região da cauda equina, que passa por dentro das vértebras lombares. A partir dali, a vida mudou completamente.

Apesar da posição limitada, o homem não se abala e quer continuar a trabalhar como entregador enquanto não consegue outra oportunidade. Ele entregou currículo em muitos lugares, mas não obteve retorno ou foi reprovado por falta de conhecimento em áreas específicas.

A rotina de trabalho consiste em acordar por volta das 6h e sair 7h para as entregas, que duram o dia todo. A apreensão no trânsito é seu único medo. “Não fico até tarde no sábado, porque muitos gostam de beber, não têm consciência e podem atropelar. Não costumo sair nem sábado nem domingo, dias que fico mais em casa”, afirmou. Anteriormente, Carlos vendia comidas como paçoca, balinha, chocolate, petas, e “o que dava para colocar na cadeira”.

“Eu não quero fama nem ficar rico. O que eu quero é a minha mesa com comida. Já passei por maus bocados por causa de comida quando eu estava na rua. Mas eu prefiro trabalhar assim do que ir para a esquina vender drogas”, finalizou o cadeirante.

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