O entrevistado da semana da Coluna Três Poderes é o embaixador Raimundo Carreiro (foto). Ele recebeu o Jornal de Brasília na residência oficial da Embaixada do Brasil em Portugal, onde concedeu uma entrevista. Em sua trajetória profissional, Carreiro foi servidor público, político, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) e, na sequência, embaixador do Brasil em Portugal, cargo que ocupa atualmente. Com postura séria e correta, Raimundo Carreiro é conhecido pela competência com que conduz os seus trabalhos. Na conversa que teve com o JBr, ele fala sobre sua trajetória e os desafios enfrentados como embaixador em Portugal.
O senhor iniciou sua carreira no Senado Federal ainda muito jovem. Que lembranças guarda desse período e como essa experiência moldou sua visão sobreo serviço público?
Iniciei meu primeiro cargo público no Senado Federal, na sua Gráfica, em 1968, quando eu estava para completar 20 anos de idade. Esse emprego consistia em um tipo de trabalho, na linguagem comum, de “chão de fábrica”. Eu embalava livros, revistas e jornais, produzidos pela Gráfica do Senado, para serem entregues nas residências dos Senadores e nos Ministérios. As lembranças que eu trago desse período eram de que o meu trabalho era muito pesado, tanto em termos de horário, quanto de execução. Havia meses em que eu começava o expediente às 5 horas da manhã. Como eu estudava à noite, e às vezes chegava em casa muito tarde, por volta de meia noite e meia, eu tinha poucas horas para dormir. Foi um período muito duro para mim. Essa rotina me marcou positivamente, porque me ensinaram, num primeiro momento, a duras penas, a compatibilizar horários de trabalho e de estudo. Mas, no fundo, essas experiências moldaram toda minha vida profissional. Aprendi que, por mais humilde que seu trabalho possa ser, é essencial fazê-lo com muita dedicação e muito gosto. Após um período de aproximadamente 4 anos e meio de trabalho, eu consegui minha primeira promoção, a auxiliar de escritório no departamento pessoal da Gráfica. Lá comecei a entregar ainda mais dedicação ao trabalho, pois eu lidava com a vida das pessoas e com o dinheiro público. Na esteira de uma grande modificação na administração de pessoal do Senado, fui requisitado para trabalhar dentro do próprio Senado. Fui então galgando posições. Quando concluí meus estudos, fui promovido para um cargo de nível superior. Depois fui chefe de seção, chefe de serviço, assessor, diretor de Secretaria, até chegar a Secretário-Geral da Mesa do Senado em 1995.
Depois de quase quatro décadas no Legislativo, o senhor migrou para o Tribunal de Contas da União. O que mais o motivou a aceitar o desafio de integrar o TCU?
Entendi que, principalmente em virtude da enriquecedora experiência que adquiri no Senado Federal sobre a dinâmica da Administração Pública, eu poderia contribuir para o desempenho das relevantes atribuições constitucionais do TCU e, por consequência, para o aperfeiçoamento da Administração Pública.
Durante sua presidência no TCU, o país atravessava momentos delicados de controle de gastos e transparência. Quais foram, na sua avaliação, os avanços mais significativos dessa fase?
Em 2016, foi promulgada a Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu o novo regime fiscal de teto de gastos da administração, cuja vigência teve início no exercício financeiro de 2017, exatamente no primeiro ano de minha gestão como Presidente do TCU. Por essa razão, a primeira medida que tomei foi convidar o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal Superior Eleitoral, o Tribunal Superior do Trabalho, o Superior Tribunal Militar, a Procuradoria-Geral da República, a Defensoria-Geral da União, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados, para, em conjunto com o TCU, discutir estratégias de aplicação do novo marco fiscal. Aludida iniciativa revelou-se de importância fundamental, pois, no final do exercício financeiro de 2017, todos os mencionados órgãos haviam cumprido o regramento fiscal. No TCU, implementamos, em minha gestão, o Sistema de Gestão de Riscos, assim como diversas soluções de informática de apoio orçamentário. Além disso, promovemos diversas revisões contratuais, a fim de reduzir despesas. Como decorrência dessas medidas, o TCU, em 2017, respeitou rigorosamente os limites instituídos pela Emenda 95, sem necessidade de valer-se da compensação financeira de R$ 34 milhões oferecidos do Poder Executivo Federal, prevista no §7º do art. 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Mesmo diante das restrições orçamentárias daquela época, reforçamos a atuação do Tribunal no combate à corrupção,com a criação de uma unidade técnica específica para tratar do tema assim como por meio do fortalecimento das parcerias com outros órgãos de controle. Criamos a SecexTCE, primeira unidade 100% digital dedicada à instrução de processos de tomadas de contas especiais. A Unidade apresentou um expressivo ganho de eficiência na execução das atividades sob sua atribuição, tendo, em apenas sete meses, instruído mais de 1.400 processos, com mais de 1.200 medidas saneadoras, perfazendo um total de R$ 1 bilhão e 750 milhões em débitos comunicados. Produzimos dois Relatórios de Políticas e Programas de Governo – RePP, que trouxeram uma análise ampla e consolidada dos problemas que, naquela época, deveriam ser enfrentados e superados pelo Estado brasileiro, no sentido de garantir efetividade na atuação governamental e melhor alocação dos recursos públicos. E produzimos também o Relatório Sistêmico sobre Disfunções daBurocracia Estatal, com o objetivo de contribuir para a redução das disfunções burocráticas, assim como para o aumento da eficiência e da transparência da gestão pública.
O Tribunal de Contas é muitas vezes visto como um órgão técnico, mas com grande impacto político. Como equilibrar independência técnica e sensibilidade política em decisões que envolvem o interesse público?
A atuação técnica do Tribunal é de grande importância, pois lhe credencia para a realização de suas auditorias e para a prolação de suas decisões, tanto condenatórias quanto de natureza corretiva. Por essa razão, o distanciamento das questões de política partidária é fundamental. No entanto, embora o conhecimento técnico seja imprescindível para um órgão de controle da importância do TCU, é igualmente importante que as decisões do Tribunal considerem a realidade da Administração Pública. Nesse sentido, as decisões técnicas precisam ser calibradas com a sensibilidade das políticas de Estado, que retratam as dificuldades do Brasil, nos campos social e econômico. Portanto, o conhecimento técnico, quando bem aplicado, é um importante instrumento para a melhoria das políticas públicas em benefício de toda a sociedade, com impactos positivos também no campo político.
Sua trajetória é marcada por discrição e solidez institucional. Como o senhor enxerga o papel da ética e da sobriedade no exercício da função pública?
Conforme reiteradamente observado pelo Ministro Carlos Ayres Britto, o servidor público não deve se servir do cargo público, mas sim exercer o cargo a serviço da sociedade. Nessa linha de pensamento, a ética e a sobriedade são elementos relevantes para o bom desempenho da função pública. Nas palavras do saudoso Pontes de Miranda, um dos maiores juristas que o Brasil já teve e que foi Embaixador do Brasil na Colômbia, o agente público não apenas representa, mas presenta o Estado, ou seja, age pelo Estado. Por esse motivo, é de extrema importância que o agente público se conduza com ética e sobriedade, a fim de dar o melhor exemplo de conduta escorreita na Administração Pública.
Ao assumir a Embaixada do Brasil em Portugal, que prioridades o senhor estabeleceu para fortalecer as relações entre os dois países?
As prioridades da política externa brasileira são definidas pelo Presidente da República e pelo Ministério das Relações Exteriores. Em linha com essas prioridades, colaborei desde o início de minha gestão para a retomada, em base regular, das Cimeiras Brasil-Portugal. Em 2023, realizamos a XIII Cimeira, em Lisboa, em 22 de abril, na qual o Presidente Lula se fez acompanhar por expressiva comitiva ministerial e foram assinados 13 acordos. A Cimeira se deu no contexto de visita de Estado de quatro dias do Presidente Lula a Portugal, que contemplou uma série de inciativas, como o voo cojunto que realizou com o então Primeiro-Ministro António Costa a bordo do KC-390 adquirido pela Força Aérea Portuguesa; a entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque; e o Fórum Empresarial em Matosinhos. Em fevereiro de 2025, teve lugar a XIV Cimeira, em Brasília. 11 Ministros portugueses acompanharam o Primeiro-Ministro Luís Montenegro, e 17 Ministros compuseram a delegação brasileira. A Cimeira coincidiu com visita de Estado de três dias do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa ao nosso país. Foram assinados 19 acordos na XIV Cimeira e anunciadas iniciativas de relevo, como a instalação do escritório da Apex em Lisboa, a compra de 12 Super Tucanos pela Força Aérea Portuguesa, a abertura de escritório da Embraer Defesa e Segurança em Portugal e a criação de escritório de cooperação do Ministério das Relações Exteriores na Embaixada do Brasil em Lisboa. Também foi estabelecida como prioridade do governo brasileiro na relação com Portugal a manutenção de um canal estreito de diálogo entre a Embaixada, os Consulados-Gerais do Brasil em Portugal e a comunidade brasileira local. Além do diálogo que temos mantido com o governo português a fim de assegurar os direitos dos brasileiros aqui residentes no contexto das mudanças em curso na legislação migratória, logramos importantes conquistas, como o reconhecimento do carnaval de rua brasileiro como manifestação cultural pela Câmara Municipal de Lisboa e o acordo de reconhecimento mútuo de títulos de condução. Neste ano em que se celebra o Bicentenário do estabelecimento de relações diplomáticas entre Brasil e Portugal, o relacionamento bilateral vive seu melhor momento histórico. Nossa prioridade é preservar essa excelência e elevá-la a novos patamares, traduzidos em resultados concretos.
O fluxo de brasileiros em Portugal tem crescido expressivamente nos últimos anos. Quais têm sido os maiores desafios e demandas dessa comunidade junto à embaixada?
Portugal abriga a segunda maior comunidade brasileira fora de nosso país, atrás apenas dos Estados Unidos. Aqui, vivem mais de 500 mil brasileiros. Nossa comunidade é, no geral, bem integrada e está presente em diversos setores da sociedade portuguesa, contribuindo de forma muito expressiva para a economia de Portugal. Um desafio é que muitos brasileiros ainda aguardam a emissão ou renovação de suas autorizações de residência. Estão sendo adotadas providências para dar resposta a esse problema, por meio do estabelecimento, pelo governo do Primeiro-Ministro Luís Montenegro, de uma “Estrutura de Missão” (força-tarefa), com a contratação de mais de 500 advogados e pessoal técnico a fim de dar maior agilidade à regularização dos imigrantes, medidas que têm surtido efeito. Também enfrentamos um processo de mudanças das leis imigratórias de Portugal, que estão se tornando mais restritivas. Isso gera apreensão por parte de nossa comunidade. O governo brasileiro tem mantido um diálogo constante e propositvo com as autoridades portuguesas a esse respeito.
Há uma cooperação histórica entre Brasil e Portugal nas áreas de cultura e educação. Que projetos recentes o senhor destacaria nesse campo?
A cooperação nos campos da cultura e educação entre Brasil e Portugal teve, em 2025, um capítulo importante. No âmbito das celebrações do Bicentenário das relações diplomáticas bilaterais, a Embaixada, além de dar continuidade a projetos já consolidados no cenário cultural local, apoiou duas importantes exposições. A primeira delas, intitulada “PAULA REGO E ADRIANA VAREJÃO: ENTRE OS VOSSOS DENTES” ocorreu entre abril e setembro passado, no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, e reuniu duas artistas, brasileira e portuguesa, de diferentes gerações e grande reconhecimento internacional, revisitando seus respectivos trabalhos, cruzando os seus temas e revitalizando as suas leituras. A exposição contou com cerca de 90 mil visitas presenciais e mais de 121 mil visitas virtuais, na página eletrônica do evento. A segunda, cuja abertura oficial se dará em 27 de novembro próximo, tem como título “LUGAR DE ESTAR: O LEGADO BURLE MARX” e ficará em exibição, no Centro Cultural de Belém, até abril de 2026. A exposição tem como ponto de partida vinte e dois projetos paisagísticos para áreas públicas desenvolvidos ao longo de sete décadas por Roberto Burle Marx (1909–1994) e seus colaboradores. Serão expostos estudos de composição, croquis, desenhos, fotografias e materiais de imprensa a respeito do renomado arquiteto e artista brasileiro. Além dessas iniciativas, destaca-se a já tradicional participação da Embaixada na Feira do Livro de Lisboa, que ocorreu entre 4 e 22 de junho passado. A presença da Embaixada, em parceria com livrarias, editoras e distribuidores locais, amplia de maneira importante a oferta e a visibilidade de obras brasileiros, nem sempre disponíveis no mercado local, além de viabilizar a participação de autores brasileiro. Na última edição, Carla Madeira, Raphael Montes e Socorro Acioli participaram de sessões de autógrafos, conferências, mesas-redondas e oficinas literárias, promovendo suas obras e ampliando o acesso do público à variante brasileira da língua. No dia 29 de agosto, que marca os 200 anos do Tratado do Rio de Janeiro e do estabelecimento das relações diplomáticas entre nossos países, o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Paulo Rangel, publicou artigo na Folha de São Paulo, e o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, publicou artigo no jornal português Público, em que celebraram os 200 anos de amizade entre os dois países e o excelente momento das relações bilaterais. As iniciativas conjuntas de celebração da efeméride continuam, com a realização, no passado mês de outubro, do lançamento de livro sobre a vida de José Bonifácio de Andrada e Silva, em Lisboa, e colóquio sobre os 200 anos do nasicmento de Dom Pedro II, em Coimbra.
O senhor não é diplomata de carreira, mas assumiu a missão de representar o Brasil em Portugal após uma longa trajetória no serviço público. Como essa vivência fora da diplomacia tradicional contribui para o modo como senhor conduz o trabalho à frente da Embaixada?
O cargo de embaixador é de estrita confiança do Presidente da República, uma vez que o embaixador é o representante pessoal do Presidente da República no país de sua acreditação. O Presidente da Repúbica pode escolher cidadãos brasileiros de fora da carreira diplomática que tenham prestado relevantes serviços ao país. A minha vivência dentro do Congresso Nacional por longos anos foi uma grande escola, capaz de formar ocidadão para exercer qualquer tipo de função pública. O trabalho de um embaixador é conversar, negociar e construir pontes, o que não é diferente do trabalho que eu exercia dentro do Congresso Nacional.
Depois de tantos anos dedicados ao serviço público, o que ainda o inspira a continuar representando o Brasil no exterior?
Depois de 57 anos dedicados ao serviço público do Brasil, ainda tenho muito a contribuir. É inspirador quando se exerce um alto cargo com a liberade de criar, sugerir e ser ouvido. Essa á a minha maior inspiração, o que me anima a continar representando meu país em Portugal.