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A CPI dos mentirosos

Pragmática Psicoterapia e Cursos

20/05/2021 10h38

Por Dr. Carlos Augusto de Medeiros

Atualmente, no Brasil, só fica entediado quem quer. Toda semana tem um conjunto de acontecimentos mais interessantes que enredos de seriados. A bola da vez é a CPI da Covid. Esse complexo fenômeno social pode ser encarado sob diversos aspectos, mas hoje eu vou abordar o comportamento de mentir.

Quem tem acompanhado os depoimentos das, até então, testemunhas, tem ficado perplexo com o que chamamos em Análise do Comportamento de ausência de correspondência entre o dizer e o fazer. Sem entrar em exemplos específicos, vimos alguns depoentes relatarem não terem feito coisas que os vimos fazer, como amplamente noticiado no jornal e em site de notícias. Também relatam terem feito coisas que não fizeram. Essa postura tem tirado do sério os senadores de oposição, membros da CPI, assim como muito(a)s brasileiro(a)s que acompanham a CPI.

De modo ingênuo, tendemos a acreditar que a linguagem se constitui em um instrumento de comunicação do que fizemos, faremos, estamos fazendo, sentimos e pensamos. Mas a linguagem é a principal forma de influenciar as pessoas, de modo a levá-las a agir como desejamos e impedi-las de agir de modo que nos desagrade. No exemplo mais simplório, uma criança pode dizer para a mãe que comeu os legumes de seu prato, quando, na realidade, os deu para o cachorro comer e, assim, convencê-la a lhe dar um pedaço de pudim de sobremesa. Ao mesmo tempo, pode pôr a culpa no irmão pela quebra do vaso e, com isso, evitar a bronca ou a surra.

Relatar não ter comido os legumes dificilmente resultará no ganho da sobremesa, do mesmo modo que, assumir a culpa pela quebra do vaso provavelmente resultará em algum tipo de castigo. Na CPI, a ausência de correspondência entre relatos e fatos ocorre por razões similares. Ou seja, reportar ter indicado o tratamento com remédios sem eficácia comprovada esperando uma imunidade de rebanho; não ter aceito a oferta de vacinas; responsabilizar a china pela criação do vírus; ou ter tido postura omissa quanto ao caos no Amazonas provavelmente resultará em punição para si e para os aliados. Ao mesmo tempo, vangloriar-se de feitos no combate à pandemia que não ocorreram, ou que não eram mais que obrigação, pode resultar em ganho de popularidade ou capital político.

Os princípios comportamentais por trás das mentiras de crianças e de alguns depoentes da CPI é o mesmo. Equivocamente, atribuímos a mentira, a omissão e o não cumprimento de promessas a algum desvio de caráter. Mas não é o caráter ou a falta de caráter que levam as pessoas a mentirem, e sim o que acontecerá se elas relatarem de modo fidedigno o que fizeram, estão fazendo, ou o que farão.

Um cliente em terapia, por exemplo, pode obter a aprovação do seu terapeuta ao anunciar que terá uma conversa delicada com a esposa. Conversa da qual tem se esquivado. Prometer diante do terapeuta e longe da esposa é fácil, uma vez que o terapeuta aprovará a promessa. Ter a conversa em si e entrar em contato com as reações da esposa é outra história. Quem nunca anunciou que agiria de determinada maneira e, quando se deparou com a situação em si, agiu de modo completamente diferente? As juras de amor eterno são um bom exemplo.

Esse mesmo cliente pode relatar que tentou ter a conversa com a esposa sem tê-lo feito, ou inventar uma desculpa para nem ter tentado. Novamente, o relato fidedigno de que não teve coragem de ter a conversa tem o potencial de gerar uma crítica do terapeuta, ou apenas, decepcioná-lo. Dificilmente, diríamos que esse cliente tem um desvio de caráter. Podemos concluir apenas que esse terapeuta não tem conduzido a sua entrevista adequadamente para viabilizar relatos mais fidedignos.

Há um elemento fundamental muitas vezes negligenciado por agentes de controle social, como pais, professores, médicos e terapeutas. Quando recompensamos ou castigamos o outro com base apenas em seus relatos ou promessas, sem termos condições de verificar os fatos a que se referem, estamos criando em cenário ideal para sermos enganados. É o caso do namorado traído que pressiona a namorada para contar para ele exatamente o que aconteceu. Ao fazê-lo, provavelmente, só estará conseguindo, para si, mais mentiras.

O mais curioso, todavia, com relação a alguns dos depoentes da CPI, é que os fatos aos quais seus relatos se referem são amplamente conhecidos. O que torna muito fácil detectar quando faltam com a verdade. A explicação para isso, ao que me parece, fora o esbravejar dos senadores de oposição e da imprensa, é o fato de que nada lhes acontecerá. Inúmeras CPI’s já aconteceram e não tiveram resultados práticos. O próprio senador relator da CPI da Covid já foi alvo de uma CPI no passado e agora é o bastião do decoro.

Normalmente, punimos severamente o comportamento de mentir e o de prometer e não cumprir, o que torna tais comportamentos prováveis apenas quando não temos como verificar a fidedignidade de relatos e promessas. Como as CPI’s costumam acabar em pizza, me parece que até as mentiras deslavadas descobertas de alguns depoentes, como sempre, sairão impunes. Sendo assim, para que dizer a verdade, não é mesmo?

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