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Psicanálise da vida cotidiana
Psicanálise da vida cotidiana

O poeta e a apreensão da realidade psíquica

Há anos que estou convencido de que a Literatura é uma ferramenta indispensável às pesquisas psicanalíticas e à aprendizagem do ofício para se ser Analista

Redação Jornal de Brasília

21/04/2021 12h21

Dr. Carlos Vieira

O amante, o lunático e o poeta
São de imaginação somente feitos.
Um vê mais diabos do que cabe o inferno,
Assim é o louco e também o amante.
Vê a bela Helena num semblante egípcio.
O olho do poeta, delirante vaga,
Passa da terra ao céu, do céu à terra.
E enquanto dá contorno à fantasia
A coisa até então desconhecida
A pena do poeta lhe dá vida
E ao que era vácuo um nome dá
e um lugar fixa.
(William Shakespeare. Sonho de uma noite de verão. Tradução de Geraldo
Holanda Cavalcanti. Obras Completas, Vol I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1988).

Há anos que estou convencido de que a Literatura é uma ferramenta indispensável às pesquisas psicanalíticas e à aprendizagem do ofício para se ser Analista. Impossível se pensar num psicanalista que não tenha como recurso interno capacidade estético-artística. A observação do mundo psíquico de uma pessoa requer alguém que tenha, treine e discipline o olhar para aquilo que se esconde além da consciência. Foi assim que Freud denominou sua
psicologia como – Metapsicologia – um olhar que transcende a impressão sensorial e vai apreender o “sem nome”, o “não dito”, enfim, tudo aquilo que repousa no Inconsciente e no Consciente não pensado, urgindo ser traduzido em palavras.


Citando o belo livro de Geraldo Holanda Cavalcanti – A Herança de Apolo: poesia poeta poema

O poeta português José Gomes Ferreira também vê no escuro o que os outros homens não vêem.


Poeta o que é?
Um homem que leva
o facho da treva
no fundo da mina
– mas apenas vê
o que não ilumina.

(Geraldo Holanda Cavalcanti. A Herança de Apolo: poesia poeta poema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012)

Escreve Geraldo Holanda:

“Seria o poeta, assim, detentor de antenas especiais, dádiva ou não divina, mas, de qualquer forma, dom que o separa dos demais mortais e sobre eles o eleva, ao permitir atravessar a pele dos objetos ou dos eventos e vislumbrar- lhes as entranhas ou, ainda, o que, por trás de tais objetos ou fatos, está acontecendo ou por acontecer. (Geraldo Holanda Cavalcanti. Opus cit.).

A formação de uma psicanalista vai exigir que o mesmo tenha e aprenda os recursos da poética. Wilfred Bion, analista indiano com formação na Inglaterra, desenvolveu um método de observação da realidade psíquica que abrange três vértices: o científico-filosófico; o estético-artístico e o místico-religioso. Freud afirmava que via nas narrativas dos romances aquilo que escutava em sua sala de análise.


Outro dia, lendo e relendo um poema de Affonso Romano de Sant’Anna – Ulisses, O Retorno – contido em seu livro Vestígios (2005), me dei conta do intróito que faço nesse escrito de hoje sobre a importância da apreensão da realidade psíquica pelos poetas passeando de mãos dadas com os analistas.


A experiência de uma análise é uma ousadia mútua, de duas pessoas corajosas, no sentido de adentrar no interior da mente e experimentar medo, angústia, temores, alegrias e satisfações, na vivência em adquirir conhecimento psíquico e, quem sabe, empreender mudanças em suas vidas – é o que plagio de Glauber Rocha – Deus e o Diabo na Terra do Sol. Freud deixou esse legado: a mente traz dentro de si “impulsos de vida e impulsos de morte”. Podemos pensar num modelo simpático: Caim e Abel não eram duas pessoas, e sim pares de opostos num só Ser. Todos nós temos por dentro aspectos de Caim e de Abel.


Naquilo que o poema de Affonso me tocou diz respeito à angústia da vivência do Tempo, e do prazer e dor que se sofre quando se vive uma mudança psíquica. Quando se experimenta uma mudança quebra-se um modo de ser anterior; instala-se um tempo de desorganização necessária, e vai aparecendo uma nova forma de ser e funcionar psiquicamente – essa é a função primordial de uma análise.


Não há mais possibilidade de se voltar ao antigo. Já não se pode mais andar com “as três pernas porque a terceira não ‘mais essencial” que Clarice Lispector escreveu na Paixão Segundo G. H. (Rio de Janeiro: Rocco, 1998). Só com duas pernas teremos que fazer nossa viagem até a morte, ainda que tenhamos a ilusão de existir uma terceira. Melhor deixar, caro leitor, o Poeta falar o tema que inspirou essa coluna de hoje:

ULISSES, O RETORNO

Como voltar
depois de Itaca
das sereias
dos ciclopes
de tanto assombro
de tanto sangue na espada?


Como voltar
se aquele que partiu
partiu-se
e voltará os fragmentos do excesso?
Não há retorno
Há outra viagem
diariamente urdida
dentro da viagem
antiga.


Embora o caminho
da volta
seja percorrido
ninguém retorna
apenas volta a viajar
no espaço anterior
estranhamente familiar.

Como se o regresso
fosse acréscimo
e o viajante descobrisse
que é atrás
que está a fonte
e na alvorada
o horizonte
não há retorno.


Há o contorno
do próprio eixo
o tempestuoso
périplo do ego
um diálogo de ecos
como quem
tenta encaixar
diferentes rostos
no mesmo espelho.


Por isto, o retorno
Inelutável
é perigoso
exige mais perícia
que na partida
mais destreza
que nos conflitos
pois o risco
é naufragar
exatamente
quando chegar ao porto.

(Affonso Romano de Sant’Anna. Vestígios, Rio de Janeiro: Rocco, 2005).

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