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Psicanálise da vida cotidiana
Psicanálise da vida cotidiana

O Pavor de Amar

A última vez que estive com Ângela foi um desastre. Um copo de suco de laranja na minha mão trêmula; um café com leite delicioso, ela tomava

Carlos de Almeida Vieira

25/06/2020 14h00

Atualizada 29/06/2020 14h23

Meus olhos não tinham mais lágrimas para verter. Nada, tudo nada em meu quarto escuro, era noite e quando os raios solares anunciaram o dia, permaneci também acostado em minha cama. Refletia com dor, que coisa é essa que me invade — não sei gostar de alguém! Não sei gostar ou não tenho coragem de entrar de cabeça numa relação afetiva? Medo, medo, também não sei! A última vez que estive com Ângela foi um desastre. Um copo de suco de laranja na minha mão trêmula; um café com leite delicioso, ela tomava. Seus olhos azuis, sua boca guardando uma proporção correta para ser beijada, suas mãos finas, brancas, suaves, segurava a xícara como quem sustenta uma flor. Olhos nos olhos, no intervalo dos goles; palavras escassas, mostrando um medo mútuo; o medo de olhar de dentro para dentro o desejo de tê-la.

O medo de amar é o próprio medo do amor ou é o medo de ser feliz ainda que a felicidade sempre seja recheada de momentos dolorosos? Sou uma pessoa observadora! Devo ser alguém muito exigente, pois a exigência interna cria uma expectativa na outra pessoa — procurar sempre o ideal no real. Não posso mais, chorara o medo de amar, caso contrário morrerei sem conhecer o amor. Desde infante fui assim: arredio, medroso, distante, perseguido. Hoje então, com essa modernidade de “ficar” meu pavor aumenta, ninguém ou alguém como eu sente o desejo e reprime a ação. Os românticos sofriam demais, mas amavam; os modernos se enclausuram numa redoma guardando seus afetos e vivendo uma vida líquida, sem consistência e sem fervor passional.

“O amor bate na porta/ o amor bate na aorta/ fui abrir me constipei./ Cardíaco e melancólico/ o amor ronca na horta/ entre pés de laranjeiras/ entre uvas meio verdes/ e desejos já maduros…Daqui estou vendo o amor/ irritado, desapontado,/ mas também vejo outras coisas:/ vejo corpos, vejo almas/ vejo beijos que se beijam/ ouço mãos que se conversam/ e que viajam sem mapa./ Vejo muitas outras coisas/ que não ouso compreender…” Os versos são do poema de Drummond –“Brejos das almas”.

Leio, releio o poema. Volto ao meu quarto escuro e começo a pensar: estou estagnado, constipado como diz o poeta, enfartado de amor em minhas veias e artérias. É óbvio que minha doença não é física, mas pode se transformar! Meu mal é o que chamo de “anorexia de afeto”, uma contenção enrijecida com medo de amar ou medo de enlouquecer amando de tanta avidez. A razão não se casa com o afeto, dentro de mim. O amor não é a inexistência de ódio, os dois são um conjunto inexorável. Quero amar, mas não quero sofrer! Fico sofrendo como consequência, fico esvaziado de olhar poeticamente para as pessoas e as coisas. Fico esquizóide, um bicho acuado com pavor de sentir, ser tocado, ser amado, ser beijado, beijar, transar, chorar, perder, retomar, viver novamente! Enfim, viver tudo que a vida tem de pares de opostos. Nos versos do itabirano apreende-se uma atitude de obervação, de distanciamento, mas o desejo permanece lá. O que falta é ação? Pagar para ver?

Meus aposentos continuavam escuros. De repente, mais que de repente, a memória me visitou em dois poemas de William Blake, contidos em seu livro: “Canções da Inocência”.

“O Garotinho perdido”

Ó meu Pai? Para onde vais?
Tu andas rápido demais!
Fala com teu garotinho,
Ou perderei o meu caminho”.
Na noite escura, pai não havia;
O orvalho o umedeceu;
Na lama funda ele sofria,
E a bruma então se esvaeceu”.

“O Garotinho Encontrado”

“O garotinho perdido na lama,
Guiado por uma errante chama
Pôs-se a chorar, meu Deus, ao seu lado,
Lembrava-lhe o pai, em branco trajado:
E tomando sua mão, ao beijar-lhe,
O trouxe até a mãe, que chorava? Em tristeza no deserto vale,
Onde seu garotinho buscava”.

Será que o medo de amar é a consequência inequívoca de ter sido abandonado, um dia? O receio de passear entre os afetos pode ser a carência de uma infância sem amor de mãe e pai. Vivemos um mundo onde, tudo se ensina, tudo se previne, tudo se promete, de um modo técnico, automatizado, esquizóide. O Ter prepondera sobre o Ser —- Ou será que tenho a melancólica evidência de não ter capacidade para amar?

Tento dormir, não consigo. Tento desejar rever Ângela, não acredito. Oscilo em várias posições em meu leito, permaneço submerso na angústia do sentimento de vazio.

Sérgio enfim dormiu. Sonhou? Acordou? Um dia quem sabe, acorda para o amor sem tanto temor.

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