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Psicanálise da vida cotidiana
Psicanálise da vida cotidiana

A função paterna

Pai é expressão simbólica da ordem, daquele que veio para implantar a lei, e a lei castra, frusta, organiza

Carlos de Almeida Vieira

14/08/2022 10h00

Atualizada 15/08/2022 9h37

Foto: Divulgação

Aproveitando a passagem do Dia dos Pais, farei algumas reflexões sobre a função paterna. O pai é o terceiro elemento do clássico triangulo original da vida de qualquer pessoa. Aquele que vem após a fusão entre a mãe e o filho ou filha. Essa fusão, junção, conjunção, primeira expressão de relação, antes e imediatamente após o nascimento é coisa séria, muito séria. Mãe e filho compõem o primeiro par, a reunião de duas pessoas que juntas se confundem uma na outra e, se deixar, gostariam de permanecer sempre assim.

A mãe realiza as expectativas do bebê e o bebê se completa nela. Nascemos em condições de precária sobrevivência, daí necessitarmos do outro para existir — é uma dependência natural que faz parte do nosso crescimento. Acontece que desde a antiguidade, a figura do pai é a evidência de alguém que pede de volta seu lugar junto à mãe, quebra a primeira fusão, intromete-se no meio dos dois primeiros — isso é vivido como uma “invasão”, como alguém que veio para separar, “me tirar da minha primeira posse”, pensaria o bebê. E isso, de fato, traz um desconforto, pois priva a realização de todos os desejos daquele infante.

A lei começa a existir no mundo humano! A lei do limite, da limitação, de que o mundo não é de uma pessoa só, o mundo é um mundo relações interpessoais, de convivência, de parceria. É óbvio, caro leitor, que essa figura, esse homem que pede seu lugar nesse triangulo é sentido como um “inimigo”, como alguém que priva, ordena e arruma a vida de desejos do filho ou filha e da própria mãe. Pai é expressão simbólica da ordem, daquele que veio para implantar a lei, e a lei castra, frusta, organiza. Por que a lei? Porque sabemos que todo animal-humano tem um impulso a transgredir, caso contrário não haveria necessidade de impedimentos reais.

A grande e importante diferença entre um animal e o animal-humano é que o segundo tem uma mente e o primeiro tem só necessidades e não desejos. Um bicho sedento para satisfazer sua necessidade de fome é violento, cruel, matador. Mas uma vez satisfeita ele se acalma e não ataca, até o próximo tempo da necessidade. A pessoa humana, por ter desejos além de necessidades, lida com seus desejos como ordens internas, como algo que não pode ser adiado, postergado e aí se transforma num “animal”. É nesse momento que chega a lei. É nesse instante que entra em cena a figura paterna ou a função paterna. É nesse tempo que nasce a capacidade de civilizar os instintos e desejos – nasce o homem civilizado.

Civilizar é a mais importante função paternal. Quando escrevo sobre isso, caro leitor, estou incluindo que a mãe, o padrasto, às vezes os avós ou qualquer pessoa, independente de sexo, pode oferecer a função paterna. E o que assistimos em nossos dias atuais? Observamos, a cada dia, que os pais sentem dificuldades enormes de preservar esta função de civilização. Hoje é o desejo pelo desejo; hoje é a civilização do prazer pelo prazer sem frustação; hoje é o império do “eu quero, logo eu preciso ter, logo alguém tem que dar, e se não der eu arrebento!”

A cada dia mais assistimos patricídios os mais horríveis possíveis; a cada dia ouvimos que em casa se perderam os limites, a autoridade, não o autoritarismo. Os filhos seduzem os pais e os pais fazem tudo o que os filhos querem. A sociedade pós-moderna é uma sociedade do consumo, do ter, do tudo conseguir, daí as fraudes, os roubo, o mundo das drogas, do assalto, do homicídio e do suicido. Até a Justiça, “ministério do civilizar”(?), não mostra firme, convicta, constante a sua função de julgar pelo principio de realidade. Parece que enquanto o homem e a humanidade assistem ao crescimento tecnológico , observa-se também o decréscimo da capacidades mentais. Estamos involuindo existencialmente a despeito do nosso crescimento econômico e material. Tudo isso por uma intolerância a renunciar à gula, à voracidade, à inveja, ou seja, o desejo de ter tudo.

“O Estado é uma comunidade do bem viver para as famílias e para os agrupamentos de famílias tendo em vista uma vida perfeita que baste a si mesma”, nos lembra Aristóteles em A Política. Será que alguém hoje está preocupado em se bastar? Parece que não, o desejo é oceânico! Kant, em Metafísica dos Costumes, dizia: “Um Estado (civitas) é a unificação de uma multiplicidade de homens sob leis jurídicas”. A corrupção atual, sabemos todos os dias, permeia todos os poderes, ditos, civilizatórios. Falta de força na função de pai.

De novo cito Aristóteles: “Da mesma maneira que a criança deve viver de acordo com as ordens de seu mestre, nossa faculdade de desejar deve se conformar (eu diria, adaptar) às prescrições da razão.” A continuar assim, estamos submersos num mundo irracional, num mundo da “ditadura do desejo”, num mundo que satisfaz completamente os meus anseios, mesmo que os métodos para conseguir esta façanha sejam: a corrupção, a fraude, o benefício do uso do poder público, as vantagens do domínio da aristocracia, os crimes de colarinho branco, as gangues do tráfico, as polícias desenvestidas da função educativa, corrompidas, e a mídia seduzindo para que se realize o sonho de todos os nossos desejos através da propaganda desvairada em benefício da sociedade de consumo.

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