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Psicanálise da vida cotidiana
Psicanálise da vida cotidiana

A Capacidade para perdoar e reparar

Feridas antigas, traições, desapontamentos, desilusões, agressões, são vivências na existência de muitos

Carlos de Almeida Vieira

03/09/2020 17h45

“Podemos nos perdoar elevando, graças a alguém que nos ouve, nossa falta ou nosso ferimento a uma ordem à qual estamos certos de pertencer, e eis-nos com garantia contra a depressão”
Julia Kristeva in “O Sol Negro: depressão e melancolia”.

Certo dia, uma pessoa muito angustiada, mostrando em suas feições o azedume do ódio e da raiva, contrito a um estado de muito ressentimento, não encontrava senão a necessidade de se vingar de um desapontamento muito antigo de uma pessoa querida. Só a vingança remove de mim essa ferida insuportável que sinto dentro do meu interior, dizia-me ela aos soluços e urros interrompidos. “O sujeito ressentido está doente de reminiscências. Não pode deixar de recordar, não pode esquecer. Ou seja, está esmagado por um passado que não pode separar e manter distante do consciente”, nos lembra o psicanalista argentino Luis Kanciper em seu célebre livro: “Ressentimento e Remorso: estudo psicanalítico.

Esse pequeno relato não é uma fala tão nova na experiência de dor de uma pessoa. Feridas antigas, traições, desapontamentos, desilusões, agressões, são vivências na existência de muitos. São marcas profundas, feridas jamais cicatrizadas, dores perenes, úlceras, desgostos, agravos e transgressões vividas no narcisismo do ser humano. Chamamos a isso de “ferida narcísica”, ou seja, ferida no amor próprio, que se acompanha de uma profunda dor psíquica e um sentimento de abatimento desestabilizando a auto-estima.

Quando se é ferido dentro desse contexto, comumente se observa o encadeamento seguinte: ferida, dor mental, raiva, ódio, ressentimento e consequente necessidade de vingança. A vingança tem aqui uma fantasia de zerar a ferida. Doce ilusão! O que se feriu já foi ferido, espelho quebrado já não reflete a mesma imagem, diz o dito popular.

Dependendo do grau de intolerância à frustação, a pessoa ou mostra sua capacidade de perdoar, ou carrega por um bom tempo um ressentimento patológico seguido de um queixume eterno, uma memória enrijecida da experiência do ferimento, e um estado interno de rancor, desprazer constante, como se a injúria vivida desestabilizasse sua consistência egóica. Alguns se sentem derrotados, desmoralizados, estragados internamente, e não conseguem mais, deixar de carregar dentro de si, ódio e ressentimento. Instala-se aí uma vulnerabilidade propícia a desenvolver estados depressivos ou seus equivalentes: sintomas psicossomáticos diversos.

Perdoar ou deprimir, eis a questão! Quando me refiro a perdoar, incluo o perdão ao outro que feriu e o perdão a si mesmo, claro que não é uma coisa simples, pois a “fúria narcísica” sempre pede a vingança, e retaliação. Expressões tais como: “isso não pode me acontecer!”; “ninguém tem o direito de me ferir”; “ quem pensa que sou para merecer tal agressão”, são frases saídas da vaidade atacada. Os humanos sempre têm a pretensão e a fantasia de serem imunes aos sofrimento, mas faz parte da dinâmica das relações humanas a coexistência de amor e ódio. Não encontramos anjos celestes na Terra, todos nós somos “anjos caídos”, mortais, passíveis de qualquer injúria assim como de qualquer momento de alegria e felicidade.

Perdoar se ensina? É algo produto da educação ou mesmo da genética? Para perdoar, alguém necessita ter uma boa auto-estima, necessita se amar de verdade e não perecer quando se é atingido pela violência do outro. Não se trata aquí de “dar a outra face”; trata-se de não se identificar com o ódio e a violência do outro, caso contrário, a pessoa se sente estragada demais e a tendência é a vingança ou o denigrimento de si próprio (depressão). Perdoar é perdoar a si mesmo, independente do outro. Quando se perdoa a si mesmo acontece uma reparação interna, de onde se sái mais forte, mais livre e mais leve.

Em seu livro citado acima, Julia Kristeva, num estudo minucioso da obra de Dostoievski, elabora a questão da capacidade de perdoar para não se mergulhar no “sol negro” da depressão. Diz ela: “ o tempo do perdão não é aquele da perseguição nem o do antro mitológico” na abóbada de rocha viva onde não se sente nem o sol no auge do seu calor, nem o inverno”. Uma prescrição que conhece o crime e não o esquece mais, sem se deixar cegar pelo horror, aposta numa nova partida, numa renovação da pessoa.” A capacidade para perdoar recái na reparação da pessoa mesma, dando uma nova qualidade interna e trazendo transformações no modo de viver sua agressividade e de sentir a dor. Não é fácil, mas a ferida que se hospeda sem ódio está propensa a uma nova reparação interna. A verdadeira reparação independe de ser desculpado.

 

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