O filósofo grego Platão, que viveu entre 427 a 348 antes de Cristo, elucubra, por seu diálogo ‘Fedro’, sobre retórica e amor sensual que o inventor da escrita teria sido censurado, por encaminhar o homem para o descuido com a mente.
Quando assisto aos jogos horrorosos de futebol, pela TV, lembro-me dos prélios nos quais a minha mente deixava-me à beira do gramado, vendo o jogo, ouvindo na Rádio Globo, com Waldir Amaral gritando: “Dez é a camisa dele!”. Também, quando Celso Garcia, na mesma emissora, mandava o garoto do placar colocar um novo número nos antigos marcadores de madeira. E quando José Cabral dizia que “A nega tá lá dentro! É bola no filó!”. Eu ‘via’ tudo isso. Como ‘via’ Fiori Giglioti abrindo as cortinas e começando o espetáculo, pela Rádio Bandeirantes, ou o Orlando Baptista, ordenando ao árbitro Aírton Vieira de Moraes, pela Mauá: “Bota a bola no meio, Sansão!”, o apelido do homem.
Eu tinha nove anos de idade, no dia 2 de março de 1961, quando Alberto da Gama Malcher apitou, o Santos goleou o Vasco, por 5 x 1, e, do seu ataque arrasador – Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe – só “Ele” não fez gol. Até Zito, que não tinha tal obrigação, balançou uma das redes do Pacaembu daquela vez. Rodava tudo, como um filme, em minha mente, inclusive o gol cruzmaltino, do Lorico. Eu ‘assistia’, perfeitamente, Miguel, Bellini, Coronel, Paulinho, Brito, Écio, Sabará, Delém, Pinga (Wilson Moreira), Lorico e Da Silva, além do treinador Paulo Amaral, saindo tristes de campo, enquanto Laércio, Mauro (Formiga), Dalmo, Fiote, Calvet, Zito, Dorval (Sormani), Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe sorriam. Era como se o cara citado por Platão não tivesse, ainda, inventado nada.
O rádio decodificava bem as minhas imagens. Naquela idade, eu dominava escrita e mente, e estaria a salvo de censuras, se fosse um grego tão antigo. Lembro-me, também, que transformei o dois de abril de 1961 num dia interminável, vendo o cruzmaltino Delém abrindo o placar, aos 24 minutos do primeiro tempo, Gerson empatando, aos 42, e Babá virando o jogo, para o Flamengo, aos 15 da etapa complementar, como narrava Jorge Curi. Bem distante, geograficamente, eu estava lá na arquibancada do Maracanã, ouvindo José Monteiro apitar e Martim Francisco gritar para Ita, Paulinho, Bellini, Barbosinha, Coronel, Écio, Lorico, Sabará, Delém (Cunha), Pacoti (Joãozinho) e Da Silva, enquanto o feiticeiro paraguaio Fleitas Solich fazia o mesmo para os rubro-negros Ari, Joubert, Bolero, Jadir, Jordan, Carlinhos, Gerson, Babá (Oton), Henrique, Dida e Germano. Outra passagem límpido, pela minha ‘visão radiofônicamente’, fora o espetáculo proporcionado por Ita, Paulinho, Bellini, Coronel, Écio, Barbosinha, Sabará, Lorico,
Wilson Moreira, Roberto Pinto e Pinga (Da Silva), ainda treinados por Martim Francisco, e pelos santistas Lalá, Mauro, Dalmo, Jorge (Getúlio), Calvet, Urubatão, Dorval, Mengálvio, Álvaro (Sormani), Pelé (Tite) e Pepe, em 13 de abril de 1961, no Maracanã, com gols de Sabará, Wilson Moreira e Pepe.
Três dias depois, numa tarde domingueira, no Pacaembu, o Vasco mandou 2 x 0 no Corinthians, do técnico Alfredo Ramos. Vi, mais tarde, numa daquelas revistas que os aviões da Panair e da Real deixavam no aeroporto de Barreiras, na Bahia, uma foto do goleiro vascaíno Ita caindo e observando a bola sair pela linha de fundo. O filme do lance passava em minha mente em tempo real. Naquele jogo, apitado por Armando Marques, o herói fora Roberto Pinto, marcando aos 36 minutos do 1º tempo e aos 39 do segundo. O dedo do técnico Martim Francisco funcionara legal contra os corintianos Cabeção, Jaime, Olavo, Ari Clemente, Sídnei, Oreco, Bataglia (Egídio), Joaquinzinho (Zague), Miranda, Rafael e Neves (Gelson).
Por fim, a máquina da minha memória deixou-me como um cidadão acima de qualquer censura grega, em 22 de abril de 1961, quando o zagueiro Russo marcou um gol contra, aos cinco minutos do primeiro tempo, e a turma de São Januário deixou o Palmeiras ser campeão do Torneio Rio-São Paulo, no Pacaembu, em jogo apitado pelo carioca Wilson Lopes de Souza. Que me desculpe Platão e seus amigos Sócrates e Aristóteles, da Academia de Atenas –primeira instituição de ensino superior do mundo ocidental. Se ele lançasse ‘Fedro’, na próxima edição Bienal do Livro, e nós viajássemos no tempo, eu lhe sugeriria contestar os deuses da Grécia Clássica. Pelo menos, no que viria sobre os tempos do ludopédio mentalizado pelo rádio.