Ainda é comum que, ao se falar em adaptar a casa para uma pessoa idosa, a primeira (e às vezes única) imagem que venha à mente seja a de uma barra de apoio no box do banheiro. Como se cuidar do envelhecimento fosse apenas isso: evitar quedas durante o banho. Prevenir escorregões. Evitar o pior.
Mas quem, como eu, trabalha com envelhecimento há mais de duas décadas — e acredita profundamente que envelhecer bem exige uma compreensão mais rica e complexa do processo — sabe que o “pior” só se antecipa quando o ambiente não favorece o melhor.
E por ambiente, não entenda apenas o espaço físico da casa. Falo de um ecossistema mais amplo: mobiliário, iluminação, roupas confortáveis, layout urbano e, claro, as dinâmicas familiares, emocionais e sociais. Muitos fatores impactam diretamente a qualidade de vida de quem envelhece. Mas, entre todos, talvez o ambiente físico — que acolhe, impulsiona ou limita — seja o mais negligenciado.
Ele parece simples, mas é profundo. A casa tem um papel muito maior do que se imagina: pode garantir autonomia, conforto, segurança e dignidade por mais tempo. Pode proteger o corpo e sustentar a autoestima. Como costumo dizer, a casa é uma extensão do corpo. E, por isso, precisa amadurecer com ele.
É aqui que entram a geroarquitetura e o ergodesign — áreas de estudo e prática que, embora técnicas, tocam em algo essencial: a liberdade de seguir vivendo a própria vida com as próprias mãos, no próprio ritmo, com menos barreiras e mais prazer.
Não se trata apenas de prevenir quedas. Trata-se de preservar rotinas, afetos e independência. De seguir cozinhando, lavando a própria roupa, escolhendo o que vestir, recebendo visitas, regando plantas, descansando com conforto. Trata-se de viver — com tudo o que isso implica.
Hoje, inicio aqui uma série de textos sobre “viver 120 anos”, convidando você a pensar nessa possibilidade, que já é real. Mas, para que esse tempo a mais seja bom, é urgente que a sociedade pare de olhar para o envelhecimento apenas pela lente da dependência — e passe a investir na promoção da saúde, do bem-estar e da qualidade de vida.
A população brasileira está envelhecendo rapidamente. O IBGE projeta que, em 2030, o número de pessoas com 60 anos ou mais será maior do que o de crianças e adolescentes com até 14. Em 2050, mais de 30% dos brasileiros terão 60+. E com os avanços da medicina, da ciência nutricional, da tecnologia e do saneamento, já é razoável imaginar que parte significativa dessas pessoas viverá bem além dos 90 — e algumas, por que não?, até os 120 anos dos quais falo.
Mas viver até os 120 exige mais do que boas intenções. Exige planejamento.
Exige que o mundo acompanhe esse novo tempo de vida. Exige cidades que favoreçam a permanência ativa. Moradias que abriguem corpos em transformação. Relações sociais que se renovem, mesmo depois dos 60, 70 ou 80. E estruturas de trabalho e produtividade que acolham a experiência — sem adoecer o corpo de quem envelhece.
Não faz sentido imaginar centenários ativos em um mundo com cadeiras que esmagam as costas, balcões altos demais, escadas mal planejadas, corredores escuros, apartamentos sem elevador ou calçadas esburacadas. Não faz sentido que os condomínios continuem sendo pensados para quem corre e nada, mas não para quem precisa de um bom banco no jardim ou sombra fresca para conversar pela manhã.
Envelhecer exige redes — físicas, sociais e emocionais.
Mas muitas dessas redes estão se desfazendo. Vemos hoje mais divórcios tardios, pessoas recomeçando sozinhas depois dos 60, mulheres maduras assumindo sua liberdade, homens aposentados buscando novos sentidos. As famílias se reorganizam, os lares se separam e os modelos tradicionais de apoio mudam. Ao mesmo tempo, os imóveis diminuem — e a vida precisa caber, com afeto e funcionalidade, em espaços cada vez menores.
Planejar um banheiro que funcione para uma mulher de 65 anos, recém-divorciada, que mora sozinha, trabalha em home office e recebe os netos para dormir não é apenas uma questão de gosto: é questão de saúde, conforto, autoestima e segurança.
A casa precisa se moldar à vida — e não o contrário.
Há ainda o custo de viver mais: medicamentos, planos de saúde, alimentação de qualidade, reformas, acessibilidade, próteses, cuidadores, profissionais especializados. Nada disso é barato. E o mercado imobiliário, em vez de responder a esse desafio com inteligência e empatia, segue especulando: vende imóveis “acessíveis” que não atendem à NBR 9050, ignora o envelhecimento populacional e entrega projetos incompatíveis com a realidade de quem vai morar neles.
Arquitetos e designers pouco informados continuam projetando cozinhas padrão, como se fossem para jovens donas de casa — que não sentirão tontura ao alcançar um armário aéreo pesado — ou closets com prateleiras altas, que não consideram as limitações de espaço e alcance.
Há muito a ser dito sobre as necessidades ambientais das pessoas 60+ — e, aos poucos, vamos esclarecer as dúvidas dos leitores.
A ergonomia ambiental não é luxo. É urgência. A longevidade nos convoca a criar espaços pensados para diferentes alturas, forças, alcances, percepções visuais e cognitivas. Exige menos degraus e mais rampas, menos esforço e mais conforto, menos improviso e mais intenção.
E o urbanismo? As cidades para quem vive até os 120 anos precisam ser caminháveis, arborizadas, seguras e gentis. Precisam permitir que uma pessoa de 70 vá à feira ou à farmácia a pé — e encontre, no caminho, sombra, banco, banheiro público adequado, uma fonte de água e, quem sabe, um pouco de conversa.
O maior risco do envelhecimento não é a queda. É o isolamento.
Por isso, condomínios voltados ao público 60+ fazem sentido — mas não como guetos da terceira idade. Precisam ser comunidades afetivas, seguras, com serviços compartilhados e espaços de convivência. Envelhecer bem significa manter vínculos, trocas, vida dentro e fora de casa. Diante da hostilidade das grandes cidades, essa é uma opção interessante — assim como as moradias assistidas, alternativas funcionais às ILPIs (instituições de longa permanência), que muitas vezes impõem rotinas rígidas e apagam a individualidade.
E se tudo isso parecer complexo demais, volto ao essencial: adaptar a casa é um gesto de amor. Amor maduro, atento, que reconhece as necessidades de quem envelhece — sem infantilizar, sem ignorar. Amor que valoriza a história de uma vida e permite que ela siga sendo vivida com liberdade.
Adaptar a casa é garantir permanência. E permanência, aqui, é sinônimo de liberdade.
Porque envelhecer é uma arte — muitas vezes nascida de reinvenções e olhares surpresos para si mesmo. Mas viver bem até os 120 anos… isso também é uma questão de projeto.