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Envelhecer é uma arte
Envelhecer é uma arte

Trabalhar, aprender e florescer: a reinvenção das idades

Por que é urgente superar o etarismo e abrir espaço para a potência criativa de quem tem 60+

Juliana Gai

17/06/2025 12h42

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Foto: Freepik

Ainda enfrentamos olhares enviesados quando alguém com mais de 60 anos diz que quer aprender algo novo, mudar de carreira ou voltar ao mercado de trabalho. Como se recomeçar tivesse prazo de validade. Como se o tempo levasse embora, além da juventude da pele, também o direito de desejar, produzir e participar.

Esse fenômeno tem nome: etarismo. A discriminação com base na idade atinge especialmente pessoas 60+, muitas vezes associadas — injustamente — à lentidão, ao descompasso com as inovações e à obsolescência. Mas será que a sociedade pode mesmo ignorar justamente o grupo populacional que mais cresce no Brasil e no mundo?

No mercado de trabalho, essa exclusão se manifesta de forma silenciosa: processos seletivos que barram candidatos maduros, “brincadeiras” que disfarçam preconceito e a recusa em enxergar o valor de quem carrega uma bagagem rica de vivências. Essa visão desumaniza o envelhecimento, tratando-o como falha ou castigo — quando, na verdade, é a única alternativa a não morrer jovem.

E não para por aí. Mulheres maduras ainda enfrentam julgamentos cruéis por expressarem estilo, desejo ou opinião. Basta uma saia acima do joelho ou um batom mais vibrante para ouvirem que “já não combinam com a idade”. Como se estilo tivesse prazo de validade. Como se, ao cruzar a linha invisível da meia-idade, fosse preciso se contentar com a neutralidade — ou a invisibilidade.

A sexualidade, então, vira tabu. Homens e mulheres que falam abertamente sobre desejo ou amor são vistos com estranhamento. Mas quem trabalha com longevidade sabe: o erotismo, o afeto e a paixão continuam pulsando em corpos maduros. Como dizia Freud, é a libido — a pulsão de vida — que move as grandes realizações humanas. Não é da apatia que nascem invenções, e sim da paixão.

O mesmo vale para os sonhos. Existe uma expectativa coletiva de que, a partir de certa idade, os desejos devam ser silenciosos, discretos, quase inexistentes. “Vai fazer faculdade agora?”, “Abrir um negócio?”, “Escrever um livro com essa idade?” — perguntas travestidas de preocupação, mas carregadas de limitação. Quem disse que sonhar é privilégio da juventude?

Mesmo eu, aos 47 anos, sigo ativa na profissão, sem nenhuma perspectiva de aposentadoria, e ainda percebo julgamentos. Tenho uma vida romântica e sexual intensa, curso formações, planejo novos projetos — e ouço críticas como “nessa altura da vida?”. O preconceito alcança até quem trabalha diretamente com o envelhecimento.

Sou de uma geração que reverenciava os mestres. Aqueles que tinham visto o mundo com olhos atentos e acumulado experiências que não se aprendem nos livros. A gente sentava em congressos, cafés e salas de aula para ouvir, com brilho nos olhos, histórias inspiradoras. O que importava era como sustentavam trajetórias éticas, produtivas e apaixonadas — não se sabiam ou não mexer em pastas na nuvem.

Hoje, percebo uma inversão. Muitos alunos valorizam mais minha presença nas redes sociais, o uso de inteligência artificial ou a capacidade de gravar reels, do que os conhecimentos acumulados em mais de duas décadas de prática. Já fui chamada de “professora cansativa” por ensinar de forma mais lenta e cuidadosa — como se a profundidade tivesse perdido espaço para a velocidade.

Esse culto à rapidez, à superficialidade e ao algoritmo tem um custo alto. A despersonalização cresce. Muitos jovens profissionais já enxergam seus pacientes mais como um conjunto de exames e sintomas do que como sujeitos inteiros. Como alertava Oliver Sacks, médicos não devem tratar doenças, mas pessoas.

Apesar de toda a tecnologia disponível, ainda escolho ligar para meus mestres mais velhos quando me deparo com dilemas clínicos. Eles me escutam, compartilham histórias, oferecem sabedoria. Felizmente, muitos continuam vivos — e na ativa. E isso, para mim, é ouro. São pontes entre gerações que não se constroem com chatbots.

Falando em gerações, um conceito que merece destaque é o da resiliência no envelhecimento — a capacidade de se adaptar, de se reinventar a cada fase. De dizer: “a vida mudou, então eu também mudo”. Isso é envelhecer com saúde. É ter flexibilidade emocional, cognitiva, social. E essa habilidade pode — e deve — ser cultivada.

Precisamos contar mais histórias de recomeços: de quem começou a empreender aos 60, se apaixonou aos 70, publicou um livro aos 80. A maturidade pode, sim, ser o terreno mais fértil da vida. Mas, para isso, o mercado precisa abrir espaço. Diversidade que exclui a idade é apenas discurso.

Equipes intergeracionais são mais ricas. Jovens trazem energia, domínio das novas ferramentas e inovação. Os mais velhos oferecem escuta, visão ampla e profundidade. Não se trata de competição, mas de complementaridade. E isso só floresce onde há respeito mútuo e valorização das trajetórias.

Também precisamos romper com a ideia de que pessoas mais velhas se acomodam. Saúde física e mental têm tudo a ver com movimento, aprendizado e desejo de viver novas experiências. Dançar, estudar, iniciar uma terapia, experimentar tecnologias — tudo isso é longevidade em ação.

Em vez de perguntar “quantos anos você tem?”, deveríamos perguntar: “o que você ainda quer viver?”. A vida não é uma linha reta com ponto final marcado. É um caminho cheio de curvas, desvios e recomeços. E cada etapa merece ser vivida com intensidade e propósito.

Nem sempre isso envolve manter um vínculo formal de trabalho. Muitos seguem atuando como mentores, professores, artesãos, empreendedores — formas legítimas de presença no mundo, com ou sem carteira assinada. Mas também é essencial garantir oportunidades reais aos 60+ que enfrentam vulnerabilidades. Iniciativas públicas e privadas precisam incluir essa população de forma concreta.

A participação ativa protege a saúde mental, reduz o isolamento e reforça o sentimento de pertencimento. Em uma sociedade que ainda mede valor pela produtividade, seguir em movimento é também um gesto de resistência e de autocuidado.

Estamos envelhecendo como sociedade, mas com uma mentalidade ainda jovem-adultocêntrica. Isso nos adoece. É urgente mudar nosso olhar sobre a velhice. E essa transformação começa por uma escuta ativa: menos discursos sobre os idosos, mais diálogos com os idosos.

Não dá mais para empurrar os mais velhos para as margens das decisões, das conversas, das oportunidades. A velhice não é um problema — o problema é a cultura que ainda não reconhece seu valor.

Precisamos de uma revolução cultural que permita envelhecer com dignidade, desejo e autonomia. Isso envolve trabalho, visibilidade, afeto e projeto de vida. Envolve reconhecer que ninguém deixa de ser gente aos 60, aos 70 ou aos 90.

Para concluir, lembro da artista chilena Violeta Parra, que compôs Gracias a la vida aos 49, mas cuja obra ganhou força mesmo após os 60. E da escritora britânica Diana Athill, que publicou seu último livro aos 101 anos — celebrando o prazer da liberdade tardia, do sexo na velhice e da leveza de quem já não precisa provar mais nada.

Elas nos ensinam que a arte — assim como o trabalho, o amor e os projetos — não seguem calendários juvenis. Permanecem vivas enquanto houver vontade, alma e coragem de florescer. Sem prazo. Sem culpa. Sem medo.

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