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Educar é ação
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Ensino de artes na pandemia: A fenomenologia do espaço como alternativa à percepção estética

Philip Ferreira

22/12/2020 9h22

Artigo escrito por: Maria Eduarda Ramos de Almeida

 

Os estudos de fenomenologia contribuíram para a associação das referências artísticas e da história da arte, de forma que a percepção partiu do entendimento do eu à relação harmônica, e desarmônica, da localização dos objetos no espaço. A figura central neste artigo, porém, é a formalização didática à qual a fenomenologia servirá como referencial teórico. A prática pedagógica de artes ensinada presencialmente é baseada em apresentação de imagens e requerimento interpretativo dos estudantes, ao qual eles podem se sentir identificados com a obra caso a assimilem a algo de sua realidade, assim como há possibilidade de acontecer o contrário e eles não conseguirem enxergar utilidade no que é apresentado. O contexto da pandemia evidencia a necessidade de modificar o funcionamento do sistema de ensino. Os alunos agora incentivados a construir o próprio conhecimento autonomamente não dialogam mais com a imposição conteudista focalizada no aproveitamento mercadológico da instituição escolar. Dessa forma, a estética deve ser trabalhada como condutora do aprendizado enquanto exigência de autoafirmação do educando.

A pandemia da COVID-19, causada pelo vírus Sars-Cov-2, coronavírus, exigiu da população mundial novos comportamentos sanitários para que se evitasse a alta propagação do vírus, que possui alta taxa de transmissão, porém baixa mortalidade. Entre as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) está o isolamento social que, no Brasil, teve início em março. Impossibilitados de lecionarem presencialmente, os professores tiveram que refazer seus planos de aula e se adaptar abruptamente ao uso das tecnologias. Conceitua-se “ensino remoto” aquele que, diferentemente do popular e qualificado modelo de ensino à distância, é realizado apenas em situações emergenciais que impossibilitam legalmente as aulas de acontecerem presencialmente. De acordo com o professor Philip Ferreira, biólogo, especialista em neurobiologia pela Universidade de Chicago e orientador educacional da SEDF, em seu recém-publicado livro Ensino em Pandemia: Ações e didáticas práticas para educadores/pais no Ensino Remoto, há diversos fatores negativos no modelo de ensino à distância, como: o estresse emocional, a dificuldade em se estabelecer limites entre o trabalho e a vida pessoal, o déficit pedagógico devido ao distanciamento das relações interpessoais, assim como os problemas próprios da utilização tecnológica.

Entretanto, ao tratar do ensino remoto é importante ressaltar não só a clara necessidade de renovação do sistema educacional, mas a impossibilidade de dezessete por cento dos estudantes brasileiros se conectarem, devido à altíssima desigualdade no acesso da população brasileira à internet. Destaca-se então que cerca de seis milhões de estudantes brasileiros, da pré-escola a graduação, não têm acesso à rede de internet, sendo 5,8 milhões destes estudantes de redes públicas. É o que diz a tabela¹ retirada do artigo Acesso Domiciliar à Internet e 6 Ensino Remoto Durante a Pandemia publicado em agosto de 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

A base metodológica do ensino remoto é composta por atividades síncronas, aulas ao vivo, e assíncronas: aulas gravadas e disponibilização de material como vídeos, textos, podcasts a serem acessados pelos estudantes no momento que lhes for apropriado. Comumente tais comandos de estudo assíncronos são seguidos de atividades avaliativas, participação em fóruns e utilizadas como medidores de frequência e participação ativa dos estudantes. Tal pedagogia exige que o indivíduo-estudante atinja um nível de organização mental para lidar com as demandas e, consequentemente, se desenvolva autonomamente. Segundo Freire (1996), o professor deve respeitar a criticidade, a liberdade e a autonomia do educando, de forma a integrar seus conhecimentos e inquietações à própria realidade, cultura e individualidade. A aproximação da subjetividade adquirida e própria do estudante às percepções e assimilação de exigências externas pode ser compreendida através dos estudos da estética.

Gaston Bachelard (1884-1962) foi um filósofo e poeta francês simpatizante do racionalismo ativo: idealizador de uma revolução pedagógica e insistia na necessidade de romper-se com o conhecimento científico tradicional, a defender o exercício da construção autônoma dos saberes dos estudantes e jovens. Bachelard é também reconhecido por seus estudos de fenomenologia do espaço, conceito desenvolvido no livro A Poética do Espaço (1957), que pode ser caracterizado como: o estudo do psiquismo da percepção empírica do indivíduo sobre um ambiente. O meio no qual Bachelard se refere é a própria casa, o ambiente domiciliar, motivo pelo qual este artigo pretende relacioná-lo ao atual momento de isolamento social. A Poética do Espaço é um poema dissertado e enxerga a casa como um organismo vivo: ela é entendida como um universo armazém de devaneios e coexistências em que cada fragmento material é lido com sua função psicológica e relacional – a forma como o indivíduo lida, percebe e cria-se afetivamente no espaço vivente. À exemplo dessa figuração da casa viva, ela é imaginada como um ser verticalizado tal como o corpo humano, em que o sótão, comum às casas do hemisfério norte, por estar próximo ao céu, é lugar-símbolo de elevação e clareza mental; o cérebro da casa. Enquanto o porão configura as sombras humanas, aterramento e tudo aquilo que se pretende esconder no subconsciente.

Tendo em vista que a casa é também o local de primeiro contato do homem com o ambiente externo: antes de ser lançado ao mundo, o indivíduo experiencia o berço. A impossibilidade de fazer conhecer a cidade, no atual contexto pandêmico, leva o educando a compreender e a viajar nos universos internos. O corpo humano reage de formas singulares à situação de confinamento e a casa passa a representar o mundo, é o único espaço ao qual o sujeito consegue explorar. Há tráfegos entre as quinas dos móveis e marcas causadas pelo tempo que despertam sensações e acordam memórias já esquecidas, a nostalgia. Essas assimilações são as mesmas sentidas pelos artistas que costumam passar meses recolhidos em seu ateliê produzindo, este espaço passa a figurar a cidade, o campo, os locais em que seus devaneios repousam e são construídos. Assim como é possível fazer associações às emoções e vivências de obras produzidas em contextos de fortes apelos e comoções mundiais ou nacionais: como o sofrimento e a insanidade mental presente nas pinturas de Munch pós Segunda Guerra; a necessidade latente de sentir, tocar, encontrar e esbarrar das obras de Lygia Clark enquanto o Brasil vivia a repressão da ditadura militar. Medo, aflição, dor e saudade são emoções que coexistem em todos que vivem a pandemia da COVID-19 e os professores não devem ignorar que os estudantes também as sentem. O trabalho dos educadores de artes, porém, deve ser de estimular uma assimilação da própria realidade e do que já existe nela para só então encontrar as respostas nos conteúdos de história da arte. É um momento atípico ao qual a necessidade do indivíduo de criticar, se impor e guiar as próprias demandas experimentais não deve ser ignorada ou substituída por um sistema conteudista que o enxerga como mercadoria.

 

Maria Eduarda Ramos de Almeida

 

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