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Do Alto da Torre
Do Alto da Torre

Leitura de fim de ano

Foi isso que a globalização fez: embaralhou espaços

Eduardo Brito

28/12/2023 19h55

Foto: Agência Brasília

Como o capitalismo se fracionou para crescer

Quando se falava em evolução dos estados capitalistas após a Revolução Industrial, pensou-se de início que a força se concentraria nos grandes impérios, mas após a implosão da maior parte deles com a Primeira Guerra Mundial, passou-se a acreditar que o futuro estaria nas nações superindustrializadas que acumulavam cada vez mais riquezas. Eram os grandes centros de crescimento, que pareciam incorporar toda a força do capital.

Assim, subir ao 102º andar do Empire State Building, em 1950, dava a sensação de estar no topo do mundo. Do prédio mais alto do mundo em Nova York, era possível contemplar Wall Street, o centro financeiro do planeta. Os navios que saíam do porto pertenciam à maior frota mercante do, e as mercadorias que transportavam eram feitas no coração industrial do universo.

Com a fragmentação dos impérios coloniais e com a nova ideia de globalização, a ideia foi se alterando. Surgiram muitos países menores, quase todos mais pobres que os grandes centros econômicos e se passou a supor que, ainda mais do que antes, esses centros permaneceriam indefinidamente como os atores econômicos de peso.

Nada disso. Hoje o edifício mais alto do mundo, o Burj Khalifa, fica em Dubai. As maiores frotas mercantes pertencem ao Panamá, Libéria e Ilhas Marshall. O coração manufatureiro do mundo está na China, Manhattan disputa negócios bancários com as Ilhas Cayman.

Foi isso que a globalização fez: embaralhou espaços. A oferta global atende à demanda global e já se pode comer hamburger McDonald no Quirguistão. E será mesmo que o pequeno Panamá tem mais navios mercantes ou capitalistas apátridas que pagam para usar sua bandeira? As Ilhas Cayman – três pequenas ilhas ao sul de Cuba – têm um dos maiores sistemas financeiros do mundo como indicam as estatísticas? Na verdade, o capitalismo se partiu em cacos, mas não como se pensava, no sentido de fragmentos pobres, mas de repartições econômicas que acumulam riquezas, independentemente da nacionalidade dos verdadeiros proprietários dessas riquezas.

Não são esses pedacinhos de terras, e muito menos seus moradores, que as possuem. Pelo contrário, são o resultado de uma busca global pelas jurisdições fragmentadas, pequenos espaços de terra que sequer têm grande senso de nação. Daí as Ilhas Cayman. A pequena colônia inglesa não é historicamente conhecida por seus bancos, o primeiro dos quais foi aberto em um consultório de dentista na única estrada pavimentada de seu único vilarejo, Georgetown, em 1953. Mas as leis de Cayman isentam os estrangeiros de impostos enquanto guardam ferozmente suas informações financeiras, tornando as Ilhas um lugar onde o dinheiro vai aparentemente desaparecer.

Tudo isso é o que mostra um livraço que acaba de ser lançado: Crack-Up Capitalism: Market Radicals and the Dream of a World Without Democracy (tradução literal seria Capitalismo Desmoronado: Radicais de Mercado e o Sonho de um Mundo sem Democracia), do economista Quinn Slobodian, ainda sem tradução em Português. Esses pontinhos de território sem definição nacional escondem os segredos sujos da modernidade globalizada. As contas bancárias suíças escondem fortunas há mais de um século. No entanto, nas últimas décadas, as zonas especiais – áreas compactas onde as regras normais não se aplicam – cresceram de uma característica marginal para uma característica definidora da economia.

O capitalismo na era da globalização não homogeneizou o mundo em um espaço plano e monocromático, como muitos esperavam. Pelo contrário, criou uma colcha de retalhos de jurisdições. O mundo agora contém mais de 5.400 enclaves econômicos: propriedades, ilhas, parques, paraísos, portos livres, armazéns alfandegados, zonas de processamento de exportação, zonas econômicas especiais, zonas de livre comércio, pontos livres e coisas afins. Um geógrafo contou oitenta e dois nomes para eles. O Brasil tem vários deles, embora só um seja mais conhecido, a Zona Franca de Manaus.

Dinheiro viajando desacompanhado

À medida que esses cortes se proliferaram, os Estados têm lutado tentando controlar suas próprias economias. A manufatura saiu do Norte Global para o Sul Global, atraída pelas regalias de tais zonas, dos quais o baixo custo da mão de obra é apenas um. A riqueza também atravessa fronteiras: talvez um décimo da riqueza global resida teoricamente em paraísos fiscais, muitos dos quais são ilhas ou microestados.

Há algum tempo economistas e cientistas políticos vêm alertando contra a tendência popular de descartar esses como curiosidades. É o caso de dois dos menores países do mundo, os principados de Mônaco e do Liechtenstein. A verdade é que o capitalismo adquiriu uma nova geografia. O autor do livro, Slobodian, é ele próprio o produto de pequenos lugares. Filho de missionários baháis, ele cresceu em uma pequena ilha ao largo da Ilha de Vancouver, no país enclave de Lesoto, e em Vanuatu, no Pacífico Sul. E ele leva esses lugares a sério. A perfuração de grandes estados por milhares de pequenas zonas, acredita, é um evento de importância histórica mundial.

Para os radicais de mercado, tem sido uma libertação. Embora tradicionalmente eles sonhassem com um mundo sem fronteiras, agora eles estão buscando um mundo intrincadamente bordado. O conceito passa a ser político: se queremos aumentar nossa liberdade, temos de aumentar o número de países, apostam os gigantes empresariais. Afinal, quanto mais jurisdições houver, mais fácil é ir às compras de soberania. Para Slobodian, no entanto, isso não é libertação, mas secessão, fragmentação de poder estatal. As corporações e os muito ricos, ao canalizarem suas atividades para espaços pequenos e excepcionais, escaparam do alcance dos Estados.

O resultado é uma forma radical de capitalismo que dribla a responsabilidade pública – ou mesmo ao escrutínio do exercício do poder econômico. Mais, acaba com a possibilidade de governos de base popular, eleitos pelo voto, formularem normas para controlar e organizar o capital. Uma economia de zonas, ilhas e enclaves também significa, afirma Slobodian, um mundo sem democracia.

Desde os tempos de John Maynard Keynes se tenta unir a produtividade do mercado com a política da democracia liberal. A chave, ele sentia, não era que o capitalismo fosse desencadeado ou abolido, mas que fosse administrado, regulado, de maneira a que o mercado pudesse ser levado a atender a um público amplo. Sem equilíbrio, os ricos, quando assustados se acharem que o grau de esquerdismo em um país parece ser maior do que em outro lugar, fariam suas fortunas correrem pelo mapa. A riqueza móvel não privaria apenas os estados intervencionistas de receita tributária, mas desestabilizaria a economia mundial. O jeito seria aplicar normas genéricas de trocas e câmbio. O dinheiro podia mover-se, mas sendo afetado por regras governamentais.

Os próprios governos mexeram com essas regras. Por exemplo, em 1973, o presidente Richard Nixon acabou quebrando a norma supranacional de que dólares poderiam ser convertidos em ouro. Os países ricos abandonaram seus controles de capital nas décadas de 1970 e 1980, inaugurando o que se começou a chamar de revolução neoliberal.

Foi aí também que o mundo offshore começou a colonizar o onshore. Assim como o dinheiro se movia para offshores, a indústria também se movia. Slobodian lembra que, atendendo a lógica de que, se os passageiros em trânsito não saem do aeroporto, eles realmente não entram no país, criou-se a primeira loja duty-free do mundo na Irlanda. A partir daí surgiu o conceito de zona franca, áreas de início próximas a portos e aeroportos em que a produção ficava isenta das substanciais regulamentações econômicas do país. Viraram assim um refúgio para os fabricantes. Os países pobres que lutavam para quebrar os padrões econômicos coloniais que os remetiam à exportação de matérias-primas e à importação de produtos acabados passaram a usar mecanismos semelhantes para absorver indústrias lucrativas dos países ricos.

Hong Kong, na verdade, sempre foi uma zona especial. A Zona Franca de Manaus se estruturaria em 1967. A proximidade de Hong Kong foi exemplar para a China depois da Revolução Cultural e da morte de Mao: em 2002 as zonas francas já representavam mais de dois terços dos 43 milhões de empregos industriais. O primeiro-ministro chinês, Deng Xiaoping, introduziu essas zonas econômicas especiais em 1979. Taiwan e Coreia do Sul já haviam se envolvido de forma lucrativa em experimentos do gênero.

A China começou com quatro zonas, a principal em Shenzhen, em frente a Hong Kong. Shenzhen foi durante anos cercada por arame farpado e guardas de fronteira, pois dentro dela havia um oásis capitalista onde os investidores estrangeiros desfrutavam de direitos de propriedade, isenções fiscais e muito mais discricionariedade sobre o emprego do que no resto da China. A Foxconn, uma empresa taiwanesa que se instalou lá, tornou-se a maior fabricante de eletrônicos do mundo. Criou-se assim uma febre de zonas francas que se espalhou pela Ásia, América Latina e África.

Os governos agora usam investimentos, incentivos e isenções espacialmente concentrados para promover o processamento de gado no Quênia e ou a produção de veículos elétricos na Costa Rica. Em 2019, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento contabilizou 5.400 zonas em 147 economias, com mais de quinhentas em preparação, revela o livro.

Nova lógica do capital

A nova lógica do capital se pareça com a Ugland House, um escritório de George Town nas Ilhas Cayman que é o endereço registrado de mais de 18 mil entidades empresariais. É claro que os paraísos fiscais são diferentes das zonas francas, mas Slobodian ressalta que ambos funcionam como brechas por onde uma grande quantidade de riqueza flui. Lugares como as Ilhas Caymans não ganham dinheiro tributando empresas, mas com taxas de registro, licenciamento e processamento, sensatas para pequenos países sem comércio ou recursos naturais. Dos países da lista negra de paraísos fiscais mais de quatro quintos são ilhas ou arquipélagos.

Como resultado, uma enorme quantidade de dinheiro pulsa através de uma rede de locais improváveis como Bermudas, Nauru, Jersey, Liechtenstein, Malta, Aruba e as Ilhas Virgens Britânicas. O dinheiro acaba voltando para centros como Nova York e Londres, mas, ao passar por paraísos fiscais no caminho, deixa muito dinheiro sumido: afinal, um dos serviços prestados pelos paraísos fiscais é o sigilo. O governo dos EUA estimou que perde US$ 150 bilhões por ano em receita com paraísos fiscais. O Google driblou os impostos dos EUA sobre sua tecnologia por mais de uma década, transferindo-as para uma subsidiária irlandesa que era legalmente residente das Bermudas.

Isso mudou também a política. Em vez de tentar derrubar governos de que não gostam, como fizeram no Irã ou no Chile, entre centenas de exemplos, os capitalistas podem driblar ultrapassar as normas nacionais e minar as receitas dos países que os contrariam. Slobodian observa como os mais ricos hoje estão ansiosos para separar e desertar do coletivo: vivem em compostos, voam em jatos particulares, velejam em super-iates, acumulam arte em portos livres, compram ilhas, encontram mundos online, constroem bunkers, estabelecem moedas alternativas ou até se lançam ao espaço. Em vez de criar jurisdições amigáveis dentro dos estados existentes, constroem-se novas jurisdições fora deles.

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