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Analice Nicolau
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Lei Magnitsky – STF escreve certo por linhas tortas

Leonardo Quintiliano explica que o julgamento na ADPF 1178 pode gerar insegurança jurídica e até crise com os EUA

Analice Nicolau

22/08/2025 16h00

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Leonardo Quintiliano

A decisão proferida na ADPF 1178 pelo ministro Flávio Dino causou grande repercussão e acirrou ainda mais o delicado momento vivido nas relações entre Brasil e EUA. Liminarmente, determinou o ministro que atividades bancárias em desacordo com os “postulados” daquela decisão dependem de expressa autorização do STF, naquela ação.

Ocorre que a ADPF 1178 trata de outro tema, apresenta outro pedido, e nada tem a ver com aplicação de lei estrangeira, muito menos de sistema financeiro. A ação discute se municípios brasileiros poderiam recorrer diretamente ao Judiciário estrangeiro em busca de responsabilização por danos ambientais e sociais ocorridos no Brasil. A provocação partiu do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que via risco à segurança jurídica e à soberania nacional caso entes subnacionais litigassem em tribunais estrangeiros sem a mediação do Estado brasileiro.

A legislação processual determina que qualquer juiz só pode decidir até o limite do que foi pedido. Trata-se do princípio da adstrição, previsto nos artigos 141 e 492 do CPC. Em observância desse princípio, o STF deveria apenas definir se municípios têm ou não legitimidade para atuar em cortes internacionais. A decisão de Dino, contudo, extrapola os limites do pedido (decisão extra e ultra petita), violando tais disposições, ao estabelecer que quaisquer atos unilaterais de Estados estrangeiros que pretendam produzir efeitos no Brasil dependeriam de autorização prévia do Supremo Tribunal Federal.

Resta claro que o ministro está utilizando a referida ação como uma resposta às sanções impostas pelos Estados Unidos a ministros do STF, com base na Lei Global Magnitsky, que permite ao governo aplicar medidas restritivas contra estrangeiros acusados de corrupção ou violações a direitos humanos, entre outras condutas. No caso, houve bloqueio de bens e proibição de cidadãos e empresas americanas transacionarem com ministros atingidos.

A decisão representa novo e perigoso precedente, uma vez que não possui respaldo legal e, quanto ao mérito, simplesmente se limita a dizer o que já é bastante claro na legislação nacional a respeito da aplicação de direito estrangeiro ao Brasil.

O relator está correto em afirmar que as sanções da Lei Magnitsky não se aplicam nas relações submetidas ao direito brasileiro. Mas qualquer estudante de Direito é ensinado que leis estrangeiras não se aplicam, em regra, no Brasil, salvo as hipóteses previstas e bem delimitadas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

Além de ser dispensável que isso seja reafirmado em julgamento de ação com outro objeto, mais grave ainda é se utilizar um processo específico para transmitir recados, ou para atingir situações e pessoas diversas. Trata-se de desvio da função jurisdicional, além de infração às regras processuais.

Vale lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro já prevê regras claras para o reconhecimento e execução de atos estrangeiros. Decisões judiciais proferidas fora do país somente produzem efeitos aqui após homologação do Superior Tribunal de Justiça, que analisa requisitos formais e a compatibilidade com a ordem pública nacional. Já a aplicação de leis estrangeiras encontra limites na Constituição, na soberania e na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

O caso da Lei Magnitsky é peculiar. Não se trata de decisão judicial estrangeira, mas de sanção administrativa unilateral, vinculante apenas para cidadãos e empresas americanas. Em solo norte-americano, é obrigação legal cumpri-la. No Brasil, porém, não possui validade automática. Instituições bancárias registradas aqui, ainda que subsidiárias de grupos estrangeiros, devem seguir a legislação brasileira. Não podem restringir operações de cidadãos brasileiros com base em norma externa sem respaldo legal interno.

Dessa forma, eventuais bloqueios ou restrições impostos a ministros do STF em razão da Lei Magnitsky não podem repercutir no Brasil. Para que bancos e empresas atuantes no país aplicassem essas sanções, seria necessário que encerrassem totalmente suas atividades em território brasileiro, sob pena de violarem a legislação nacional. Trata-se de cenário improvável, dado o peso do mercado brasileiro para essas companhias. Esse dilema pode, por outro lado, ensejar a revisão das punições pela Lei Magnitisky.

O episódio demonstra, mais uma vez, a tensão entre a necessidade de respostas rápidas diante de fatos políticos e internacionais e os limites formais das ações constitucionais. O Supremo poderia e deveria enfrentar o tema da aplicação de sanções estrangeiras em território nacional em ação própria, discutida de maneira transparente e com todos os interessados. Ao optar por ampliar os efeitos da ADPF 1178, o ministro Flávio Dino acabou escrevendo certo por linhas tortas: acerta na defesa da soberania brasileira, mas fragiliza o resultado ao extrapolar os limites processuais.

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